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Cecília Martinho (AIBILI): “Através dos olhos pode-se descobrir várias doenças”

6 de Outubro 2024 Jornal Campeão: Cecília Martinho (AIBILI): “Através dos olhos pode-se descobrir várias doenças”

Cecília Martinho é a directora executiva da Associação para Investigação Biomédica e Inovação em Luz e Imagem (AIBILI), uma instituição com sede em Coimbra que, ao longo dos seus 35 anos de existência, tem desempenhado um papel crucial na investigação e inovação na área da saúde. Sob a sua liderança, a AIBILI destacou-se internacionalmente, não apenas pela sua participação e coordenação em estudos clínicos, mas também pelo desenvolvimento de tecnologias avançadas de imagem médica e pela classificação de exames oftalmológicos.

 

Campeão das Províncias [CP]: Coimbra tem centros de excelência que passam despercebidos a muitas pessoas. Por isso, peço que comecemos por apresentar a AIBILI.

Cecília Martinho [CM]: A AIBILI é uma instituição dedicada à investigação clínica, com 35 anos de actividade. Destacamo-nos por ser uma entidade bastante singular, pois surgimos um pouco antes de tempo. Actualmente, o nosso foco recai principalmente sobre a área da oftalmologia, embora também estejamos envolvidos em diversas outras áreas científicas.

É uma associação privada sem fins lucrativos e, como tal, conta com vários associados. Entre as entidades que a constituem, encontramos a FLAD – Fundação Luso Americana Desenvolvimento, a Fundação Champalimaud, , o IAPMEI, e diversas empresas farmacêuticas, entre outros. Temos também investigadores independentes que contribuem para a nossa missão.

 

[CP]: Diz que surgiram antes de tempo, porquê?

[CM]: Sim, de facto, o nosso percurso não tem sido fácil, uma vez que, na altura da nossa criação, a investigação clínica não era amplamente discutida em Portugal. Contudo, actualmente, esse cenário mudou, e a investigação clínica tornou-se uma parte fundamental do desenvolvimento e inovação de Portugal, sendo considerada uma área estratégica. Hoje, podemos afirmar que há uma sensibilização muito maior entre as diversas entidades para a importância deste tema. Ademais, a investigação clínica é um campo bastante regulamentado e exige elevados padrões de qualidade, o que é absolutamente necessário, visto que envolve a vida e o bem-estar das pessoas. É essencial que haja rigor e se mantenha.

 

[CP]: Quem é esta personalidade do mundo científico de Coimbra, José Cunha Vaz, Professor catedrático emérito de Oftalmologia da Universidade de Coimbra e actual presidente Honorário?

[CM]: O Professor Cunha Vaz é uma pessoa com uma visão extraordinária e merece todo o reconhecimento. Ele é uma figura repleta de energia, dinâmica e constantemente a trazer novas ideias e desafios. Além de ter criado a AIBILI, o que é, de certa forma, inovador para a sua época, ele passou um tempo nos Estados Unidos e trouxe consigo todo o conhecimento adquirido, que procurou implementar em Portugal.

Foi também o responsável pela criação de um serviço de Oftalmologia nos Hospitais da Universidade de Coimbra, que, hoje, possui uma dimensão relevante e colocou Coimbra e Portugal no mapa internacional da oftalmologia, sendo reconhecidos mundialmente. A equipa que formou, juntamente com o serviço que desenvolveu, tem tido uma produção científica de grande relevância, reconhecida internacionalmente, como demonstram os prémios que já recebeu. As suas ideias são sempre inovadoras, e ele é, sem dúvida, um investigador nato, apaixonado pelo que faz. Ele acorda diariamente com a vontade de aprender, questionar e desafiar tanto os colaboradores quanto os jovens que o rodeiam. Tem orientado muitos talentos e, em conjunto, tem contribuído significativamente para a evolução da ciência na nossa instituição, a nível nacional e internacional.

 

[CP]: Sabemos que a AIBILI, a partir de Coimbra, tem a liderança de uma rede europeia. O que é esta rede e qual o objectivo?

[CM]: A rede EVICR.net, sigla para “European Vision Institute Clinical Research Network”, é uma rede europeia de investigação clínica na área da oftalmologia, criada por iniciativa do Professor Cunha Vaz. O objectivo principal desta rede é fomentar a colaboração entre centros de investigação em toda a Europa, permitindo ganhar uma maior escala e relevância para a realização de estudos clínicos, sobretudo os de iniciativa dos próprios investigadores, que possam ser apresentados e reconhecidos a nível internacional, incluindo nos Estados Unidos e noutros continentes.

A criação desta rede foi fundamental, pois, isoladamente, os centros europeus representariam uma amostra muito reduzida. Ao unirem-se, os investigadores europeus ganham uma posição mais competitiva e significativa no cenário da investigação clínica global. Actualmente, a EVICR.net conta com 95 centros em 15 países europeus. Contudo, é importante destacar os desafios que esta rede enfrenta, tais como a diversidade de línguas e as diferentes legislações nacionais, mesmo com a existência de regulamentação europeia. Iniciar um estudo clínico a nível europeu não é uma tarefa fácil, mas a rede tem desempenhado um papel essencial no avanço da investigação clínica multinacional em oftalmologia.

 

[CP]: Que trabalho é que a AIBILI desenvolve?

[CM]: A nossa contribuição, como já referi, é na área da investigação clínica. É fundamental caracterizar a progressão da doença. Além disso, para o desenvolvimento de um medicamento, existe todo um processo de desenvolvimento laboratorial que precede a nossa intervenção. Não é o nosso papel trabalhar na fórmula ou na formulação, mas sim validar e verificar como o medicamento se comporta na população. Daí a importância dos ensaios clínicos, que são altamente regulamentados e exigentes, pois a saúde do doente é a prioridade máxima. Estes ensaios passam por comissões de ética e são acompanhados de perto em todas as fases.

Após ultrapassadas as quatro fases dos ensaios clínicos, o produto pode finalmente chegar ao mercado, oferecendo melhores cuidados à população. Este processo conduz ao desenvolvimento de novos medicamentos, novas metodologias, novos tratamentos e dispositivos médicos, dos quais todos nós beneficiamos. Quando vamos à farmácia, é importante lembrar que todos os produtos disponíveis passaram por este processo essencial.

Contribuímos para este percurso de diversas formas, não apenas conduzindo ensaios clínicos no nosso centro, mas também, por exemplo, participando com o nosso centro de leitura. As imagens recolhidas em ensaios clínicos a nível mundial são analisadas aqui, o que nos permite quantificar a evolução das doenças e o comportamento dos medicamentos. Isto ajuda a indústria farmacêutica a garantir que os produtos que chegam ao mercado são seguros e benéficos para todos nós. Temos muito orgulho no nosso trabalho e na nossa contribuição para a sociedade. Esta é, sem dúvida, uma das nossas principais funções.

 

[CP]: Como é que lhes chegam as pessoas que vão participar nos ensaios?

[CM]: Os doentes são referenciados pelos médicos e centros hospitalares, de acordo com critérios muito específicos. É importante ter presente que é altamente vantajoso para os doentes participarem em ensaios clínicos pois são objeto de uma vigilância regular que lhes permite o tratamento atempado e logo que necessário. Existe sempre uma consulta, que serve para seleccionar os doentes que podem participar no ensaio, com base no protocolo clínico, que é extremamente rigoroso. Apenas pessoas com determinada patologia e na fase correcta podem ser incluídas no estudo, sendo sempre acompanhadas com o maior cuidado.

É importante destacar que, em todo o processo, a protecção do doente é a nossa prioridade. Muitas vezes, os doentes mostram interesse em participar, mas nem todos preenchem os requisitos exigidos pelos ensaios. No entanto, posso partilhar que temos vários doentes que, após a conclusão dos ensaios clínicos, manifestam o desejo de continuar a ser seguidos por nós. Contudo, quando o ensaio termina, têm de regressar às suas unidades de saúde. Em termos de investigação clínica, temos todas as condições necessárias para a sua realização aqui.

 

[CP]: Como perspectiva o futuro da AIBILI?

[CM]: É muito promissor. Possuímos competências específicas na área da oftalmologia, acumulando já 35 anos de experiência. Com o crescente interesse em investir na investigação clínica em Portugal, é importante que existam entidades como a AIBILI. Acredito que temos todas as capacidades para contribuir para que os melhores cuidados de saúde cheguem às pessoas, pois esse é o nosso principal objectivo.

 

[CP]: Muitas doenças oftalmológicas estão relacionadas com outras patologias?

[CM]: Já existe muita investigação a ser conduzida nesta área. O olho pode, de facto, ser considerado uma janela para o nosso corpo. O que se observa no olho pode ser um indicador de várias patologias, incluindo doenças vasculares, neurológicas, cardíacas e diabetes. Há uma vasta gama de estudos em curso, e esta é também uma das áreas em que trabalhamos. A investigação nesta vertente multidisciplinar permite-nos estabelecer ligações com outras patologias.

Através da observação do olho, podemos obter dados cruciais para um diagnóstico não invasivo e mais precoce de patologias de outros órgãos. Não nos limitamos a avaliar a saúde ocular, mas utilizamos essas informações para detectar potenciais problemas noutras áreas do organismo. Este é o caminho que estamos a seguir, e o objectivo seria a capacidade de identificar precocemente doenças, utilizando biomarcadores.