Manuel Castelo Branco, advogado e antigo presidente da Coimbra Business School – ISCAC, assume agora a presidência da Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra. Nomeado pelo Bispo de Coimbra, vai liderar a Comissão por um período de três anos, sucedendo ao juiz conselheiro Santos Cabral. Este órgão, que se dedica a reflectir e agir sobre questões sociais e de justiça à luz dos ensinamentos da doutrina social da Igreja, contará agora com a experiência de Manuel Castelo Branco na sua liderança.
Campeão das Províncias [CP]: Como encara esta nova missão, tendo em conta que o seu antecessor, o juiz conselheiro Santos Cabral, teve um papel tão dinâmico na liderança desta Comissão?
Manuel Castelo Branco [MCB]: Eu costumo dizer que herdo um “fardo levíssimo”, considerando o trabalho extraordinário que o Dr. Santos Cabral e toda a Comissão realizaram nos últimos dois mandatos, o que corresponde a seis anos. É, sem dúvida, muito difícil, se não mesmo impossível, substituir uma personalidade como o Dr. Santos Cabral. No entanto, ele continuará a fazer parte da Comissão, o que é uma grande mais-valia, e estou certo de que terei muito a aprender com ele e que me aconselharei frequentemente. Importa também destacar que a Comissão nunca foi um órgão unipessoal. O estilo de liderança do Dr. Santos Cabral foi sempre colegial, democrático, participativo e consensual, tanto na abordagem dos temas como na condução dos trabalhos. Sempre existiu um diálogo directo e muito próximo com o senhor Bispo de Coimbra, D. Virgílio, a quem aproveito esta oportunidade para agradecer publicamente a confiança em mim depositada.
[CP]: Quais são as principais ideias e objectivos que pretende concretizar na Comissão Diocesana Justiça e Paz?
[MCB]: Desde logo, pretendo manter o estilo e o modo de trabalho da Comissão, promovendo um diálogo permanente e construtivo entre todos os seus membros. Internamente, é essencial que continuemos a trabalhar de forma colaborativa, como sempre tem sido feito.
No plano externo, a função principal da Comissão é a divulgação da Doutrina Social da Igreja, que, na minha perspectiva, se mantém completamente actual e, diria, mais necessária do que nunca. Os últimos anos exigem não uma renovação da doutrina em si, que permanece perfeitamente actual, mas sim uma renovação da sua presença no mundo. Portanto, a nossa prioridade será reforçar essa presença pública dos valores essenciais da Doutrina Social da Igreja, tanto no contexto global como, particularmente, na Diocese de Coimbra. É fundamental que essa mensagem continue a ser visível e ouvida no espaço público e que os seus princípios valorativos orientem a nossa acção na sociedade.
[CP]: Mas que ideias quer desenvolver durante a sua presidência?
[MCB]: Tenho a vantagem de não precisar de apresentar muitas ideias novas, pois as linhas fundamentais da Doutrina Social da Igreja adaptam-se perfeitamente aos desafios contemporâneos. Sob a liderança do Dr. Santos Cabral, a Comissão concentrou-se no ambiente, alinhando-se com as encíclicas do Papa Francisco. Um exemplo foi o concerto “Pela Terra e pela Terra”, que iniciou um processo de sensibilização sobre a Laudato Si e as preocupações ecológicas das encíclicas papais.
Em parceria com a Câmara Municipal da Figueira da Foz, foi plantado um jardim Laudato Si em Buarcos, com planos para jardins semelhantes em Condeixa e Cantanhede, todos simbolizando a preservação ambiental e a ecologia integral defendida pela doutrina social da Igreja.
Além disso, a Comissão continuará a prestar especial cuidado aos temas do trabalho e da pobreza, aos quais a Comissão anterior, presidida pelo Dr. Santos Cabral, dedicou profundo cuidado. Em 2024, é alarmante que a pobreza e as desigualdades económicas estejam a aumentar. A condição do trabalho também tem regredido, com um aumento do trabalho precário e das desigualdades salariais, com os consabidos impactos negativos na vida familiar e social, devidos, sobretudo, à flexibilidade excessiva no mercado e nas leis de trabalho.
[CP]: A Comissão vê com bons olhos a hipótese de se passar para quatro dias de trabalho?
[MCB]: A questão central é, de facto, o estatuto e a condição da pessoa que trabalha o mundo hipermercantilizado dos dias de hoje.
O tempo de descanso é uma dimensão fundamental. Está amplamente demonstrado que a produtividade não depende da exaustão horária, mas sim da motivação, do bem-estar no local de trabalho e de salários que permitam viver com dignidade. Para além disso, o trabalho deve permitir tempo para o lazer, para o descanso, para o desligar, para estarmos connosco próprios. Estudos mostram que a produtividade laboral tende a aumentar quando há maior respeito pelos períodos de descanso. O tempo do trabalho não pode esgotar o tempo da vida.
Há certas ideias feitas que precisam de ser desconstruídas. Não podemos aceitar uma realidade em que passamos dos servos da gleba medievais para o que eu costumo chamar “os servos do capital”. O Papa tem sido muito claro a este respeito, sublinhando a importância de colocar o ser humano no centro das preocupações e das políticas laborais.
[CP]: A questão das migrações também preocupa a Comissão?
[MCB]: A questão das migrações é central e está ligada aos temas do trabalho, da pobreza e do ambiente. A situação dos refugiados exige também uma reflexão – e uma acção – profunda.
O Cristianismo, portador de um humanismo radical e movido por uma ânsia profunda de igualdade, coloca o amor ao próximo, melhor, o amor ao outro, a qualquer outro, no centro da sua acção. Assim, a Igreja e, naturalmente, a Comissão têm a responsabilidade de defender, de modo claro, os direitos dos migrantes, sem distinção de nacionalidade. A fraternidade universal deve guiar a nossa acção, especialmente num contexto em que o estrangeiro é, em tempos de crise, o bode expiatório electivo.
Na prática, é essencial uma análise crítica das políticas e leis migratórias em Portugal. Não podemos aceitar que imigrantes enfrentem longas filas sob condições inumanas para agendar diligências administrativas, o que constitui uma violação dos seus direitos fundamentais. Como cidadãos de um Estado de direito, devemos garantir que os migrantes gozem dos mesmos direitos e liberdades que os portugueses, lembrando o nosso próprio passado de emigração e os desafios que os portugueses enfrentaram no estrangeiro. Como cristãos, não podemos esquecer que não há grego nem judeu, todos somos irmãos da mesma comunidade humana.
[CP]: Como advogado e ex-membro do Gabinete de uma ministra da Justiça, como vê o momento actual?
[MCB]: Reconheço que, actualmente, o sistema de justiça em Portugal está numa situação preocupante. A justiça, assim como a saúde e os transportes públicos, piorou nas últimas duas décadas, o que é incompreensível.
É crucial investir em recursos para a justiça, tal como é necessário fazê-lo para o Serviço Nacional de Saúde. O apoio judiciário é ineficiente e a organização judiciária tornou-se distante, dificultando o acesso à justiça. A reforma implementada nos últimos anos, que priorizou a eficiência em detrimento da proximidade, tem sido prejudicial.
Além disso, a complexidade das leis tem afastado o cidadão comum do acesso à justiça, o que viola o princípio da igualdade. Temos uma morosidade processual que prejudica empresas e cidadãos. O Ministério Público, não deve continuar a orientar a sua acção para um público frenesim estatístico de condenações. A prisão preventiva não deve ser a regra, mas a excepção.
Vivemos uma crise de direitos e liberdades fundamentais, e a privação de liberdade deve ser tratada com a seriedade que merece, uma vez que gera estigmas irreparáveis. A situação actual revela uma fragilidade do nosso Estado democrático, que vem permitindo que a justiça se transforme num espectáculo público.
[CP]: Atento à sociedade e ao mundo, quais são as suas principais preocupações?
[MCB]: Acabei de fazer 60 anos e, como professor, mantenho um contacto próximo com gerações mais jovens. Tenho um filho na casa dos 30 e um neto de 5 anos, o que me proporciona uma visão abrangente das preocupações actuais. A justiça e a paz, como pilares da Comissão Diocesana, são temas que me preocupam profundamente. Sou de uma geração que via o futuro com optimismo, especialmente após a queda do Muro de Berlim e o fim da Guerra Fria, que prometiam um mundo mais pacífico e democrático. Contudo, a realidade tem demonstrado o oposto: o regresso de conflitos, genocídios, a erosão dos direitos humanos e o colapso do direito internacional.
A crise dos migrantes é sem precedentes, com pessoas a morrerem em desertos e mares. Assistimos à regressão da democracia em vários países, incluindo na Europa comunitária. A ascensão de autocracias e o enfraquecimento das instituições democráticas são alarmantes. Além disso, a desigualdade económica tem aumentado drasticamente, com uma minoria detendo a maior parte da riqueza mundial. Essa concentração de poder e riqueza é insustentável e gera um clima de descontentamento e de ressentimento.
Logo, é fundamental promover um sobressalto ético e político, reconhecendo que não podemos considerar a democracia como uma situação perenemente garantida. Precisamos de instituições, como a Comissão de Justiça e Paz, que defendam uma visão e um modo de ser éticos na política e na economia. Estamos num momento em que devemos agir, pois a injustiça e a desigualdade não são realidades naturais, mas construídas.