Coimbra  8 de Outubro de 2024 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Kito Pereira

Cartas de amor…

20 de Setembro 2024

Um dia parti. Mas o Mondego, esse ingrato, continuou a correr indiferente para a foz. Não se compadeceu pela minha luta e meu sustento no teatro da vida. Saí da minha cidade inundada de estudantes e futricas. Da urbe do quarto alugado, que ajudava a pagar as contas do salário modesto. De uma ponte a quem chamam de Santa Clara. E, lá no alto, na margem esquerda do rio, vigilante dos nossos passos, Isabel de Aragão.

Na minha nave planetária, um dia aterrei noutras realidades. O Mondego, a Torre do Pensamento, os Jardins do Parque Manuel Braga, eram substituídos agora pela geometria dos olivais a perder de vista. Ao barulho metálico do rodado dos “elétricos”, contrapunha a Beira-Baixa uma orquestra de silêncios. Aos pássaros fugidios dos beirais dos telhados da Lusa-Atenas, planava no céu imenso da zona mais raiana, o navegar imponente de uma águia-real.

A Praça da República coimbrã era agora substituída pela sala nobre da Devesa. Os Jardins da Sereia pelos Jardins do Paço. As minhas canseiras profissionais, passaram da Rua Antero de Quental para a Avenida Primeiro de Maio, da urbe albicastrense. O Estádio Municipal de Coimbra era agora o Vale do Romeiro. Ali, no Vale do Romeiro, também se marcavam golos. Mas eram golos de outra cor. Golos que até festejei. Mesmo não sendo de uma camisola negra.

Depois, havia as gentes. As gentes campesinas que conheci mais de perto. Percebi da importância do repicar de um sino. De um sino que juntava os fiéis para a missa dominical. Que dobrava por finados. Que tocava a rebate, quando o fogo se aproximava da povoação e abria as suas goelas. Era preciso ajudar os bombeiros. Era preciso defender o que era nosso e o que era de todos.

Recordo Salgueiro do Campo. Recordo Ninho do Açor. Recordo Sobral do Campo. Recordo Tinalhas. Recordo a Lameirinha. Recordo Almaceda. Recordo Freixial do Campo. E lembro Juncal do Campo a olhar o Moradal. E guardo na minha mente os domingos das manhãs claras, da taberna do “Real” ponto de encontro das gentes campesinas e dos que, ali nascidos, vinham da cidade visitar as suas origens.

Também daquelas que, no intervalo do seu universo da charrua e do arado, batiam cartas na mesa numa “sueca” de amizade solidária e fraterna. Atrevo-me a afirmar que eram cartas de amor.