É sempre assim na agonia do Verão. Lancei âncora na saudade. Perdido por entre a bruma das minhas memórias, recordo Coimbra. O meu Bairro. A minha juventude. Tudo…
Agora que o meu Tempo se aproxima do Ocaso, desfilam perante mim os actores que, naquela época remota, preencheram o meu universo de infância e juventude. A Palmira leiteira, no seu trôpego andar. O Zé sapateiro que me feria os sapatos com a ponta de uma sovela. O Albino barbeiro e o matraquear da tesoura. Tinha dotes de tenor. O Janeiro, que cobrava as quotas de Centro, percorrendo as ruas do bairro de bicicleta, em pedalada ritmada. O Centro, o velho Centro. Os bilhetes para ver a televisão a cinco tostões. A paciência do amigo Donário para com a clientela tardia.
E é neste desassossego de alma, neste desencontro de emoções, que vou recordando o Campo de Santa Cruz. Os jogos de bola nos feriados das aulas no D. João III. As figuras pardas do Egídio e do Almeida, contínuos do Liceu e as suas vozes hostis. Lembro daquelas fardas azuis de botões de lata amarelos, o tilintar das chaves das salas de aula que ainda me soam aos ouvidos como se de uma penitenciária se tratasse. Os estalos do Reitor – o Guerra – que comandava o navio como se de uma nau de forçados se tratasse.
Recordo o dia que parti para a guerra. É na tropa que te fazes Homem – diziam. Mas não. Fizeram de mim um homem de arma na mão, à caça de outros homens. Quiseram fazer de mim um bicho. Não conseguiram. É a minha a medalha reluzente. A minha gargalhada triunfante. Recuso-me a lembrar. Foi há cinquenta anos. Obrigado por me terem deixado enterrar esta etapa de um passado medonho.
Um dia, lancei amarras na Beira-Baixa. Foi há mais de trinta anos. Trinta anos é muito tempo. Muitos dias, muitas horas a cantar – diz o Paulo de Carvalho. Assim tem sido. Canto o hino da Primavera. Canto a natureza vestida da sua farda de gala. Canto a explosão dos aromas e das cores. Danço ao ritmo dos adufes deste interior profundo. Mas dedilho uma canção do meu berço, quando já sopram os Ventos de Outono. Tomo-me então de saudade, embrulhado na solidão de uma capa negra de Coimbra.
O horizonte, que daqui avisto, veste-se agora da cor da nostalgia. Abrigo-me, timidamente, deste Tempo de lamúria. Preparo-me para o fardo que me tolhe os ossos – o General Inverno. E daqui, deste rincão beirão, termino como comecei: “…é sempre assim na agonia do Verão. Lancei âncora na saudade…”.