Isabel vai de novo descer à cidade de Coimbra. Sendo eu um católico de estouvada fé, aceitei de bom grado o dia em que me ofereceram uma pequena medalha em ouro com a Sua Imagem. Estava eu no patamar de partir para África. Tive com Isabel sempre uma convivência pacífica. Talvez o facto de ser a padroeira da terra onde nasci, ajudasse e ajude a esta empatia que se criou. Com Ela pousada no peito num fio que me enlaçava a garganta, subi ao barco que me levou para a guerra.
Isabel, símbolo da paz. A suprema ironia de me acompanhar em jornadas de calor dilacerantes escondido no capim a fazer a guerra. Homens à caça de outros homens. A vergonha da humanidade. E assim andei, o fio a balançar-me no pescoço e Ela comigo naquele cirandar por um país distante.
O tempo deixou as suas marcas. Mais de dois anos de sacrifícios, de sofrimentos, de constantes sobressaltos. No meu catre subterrâneo deitado na cama, eu olhava a medalha e começava o meu monólogo com Ela. Mas quando será que vamos embora deste inferno?. E Ela respondia-me com o silêncio do Seu semblante sereno.
Um dia, vim para Bissau porque tinha acabado a minha comissão de serviço. Lisboa era o destino. Protelaram a minha partida e a suprema perfídia de numa negra madrugada me porem a vigiar com outros camaradas de armas, uma carga de urnas de militares falecidos em combate, num barco cargueiro de porões sombrios e medonhos. “Rita Maria”, assim era o nome daquele barco do inferno.
Tive um esgotamento nervoso e fui parar ao hospital militar de Bissau. Acordei numa cama da unidade e institivamente levei a mão ao pescoço e não encontrei a minha Companheira de martírio – Isabel de Aragão. Logo depreendi que me a tivessem furtado quando entrei desfalecido nas urgências do Hospital. Dois dias depois, recuperado, fardei-me pois tinha tido alta hospitalar. Então, um cabo africano de bata branca, enfermeiro, veio junto a mim de punho fechado. Depois abriu uma mão onde aconchegava o fio com Isabel de Aragão. Suspeitando que me o tirassem do pescoço por gente pouco escrupulosa, guardou o fio que naquela hora me devolveu. Agradeci-lhe penhoradamente, e com Isabel de novo ao pescoço, nas asas de Portugal deixei Bissau e renasci para a vida.
Um dia, na minha residência, alguém pouco honesto subtraiu-me alguns pertences. Pensei que de novo tinha ficado sem Isabel de Aragão e daquele fio que marcava uma época cinzenta da minha existência. E em como era importante para mim aquela medalha em ouro. Não pelo que significava em termos materiais, mas do afecto à minha Companheira de martírio em terras de África.
Há tempos, lamentando o seu desaparecimento, surpreendentemente, a minha companheira de rota disse-me que a medalha não estava no rol dos bens desaparecidos. Como me reforçou que Isabel de Aragão que vivia e vive naquele fio, está guardada e resguardada de qualquer investida de cobiça. Com a medalha na palma da minha mão, de novo viajei por aquele passado pardo. Então, lembrei-me do enfermeiro africano e da sua honestidade em me devolver o que me pertencia, e de por duas vezes eu ter o desânimo de ter perdido algo que me alimentava o espírito em tempo de guerra.
A medalha reapareceu. Mais do que a lenda popular das Rosas no Seu Regaço, talvez seja este o meu Milagre da Rainha Santa Isabel.