Em regime democrático, as eleições são um ganho adquirido que não podemos, não devíamos desperdiçar, quão difícil foi de conquistar. E não foram desperdiçadas, mas por aqueles que vivem da propaganda muitas vezes inadequada até ilícita, do facciosismo do folclore eleitoral, do oportunismo de anúncios quais prebendas que nada têm a ver com o motivo das eleições, neste caso europeias.
Mas as ilusões e as desilusões sucessivas para as pessoas, face às suas expectativas não correspondidas, às vitórias que não se traduziram em realidades palpáveis na melhoria da qualidade de vida, às derrotas que resultaram em degradação do que se queria preservar, levam os cidadãos a afastar-se do seu dever de votar, de exprimir opinião, de acreditar que ainda se deve acreditar.
A elevada abstenção (embora menor que nas anteriores eleições europeias) não é um bom prenúncio para a democracia que tem de ser regada todos os dias, para que não possa estiolar, não seja subvertida pelos seus inimigos, não seja aproveitada para ser destruída pelos oportunistas extremistas.
A guerra na Europa, as consequências das alterações climáticas, os jogos de poder com faca e alguidar e muito sangue, a disparidade salarial e do crescimento económico nos vários países da UE, seriam motivos para a mobilização de consciências, vontades e exercício de cidadania, e não para o demissionismo de quem está fragilizado, descoroçoado, frustrado, mas não deve delegar o seu futuro e dos seus.
Todos ganharam, por isso ou por aquilo
Os resultados são já um clássico da noite eleitoral, antes da afinação de estratégias partidárias para novas frentes de procura de adesões, motivos para dissensões e crises, bicos de pés para acesso ou manutenção do poder.
Congratulo-me que o Partido Socialista tenha ganho as eleições europeias (com 1% de vantagem), após ter perdido as eleições legislativas (por 0,8% de desvantagem), mas na noite eleitoral das audiências, todos ganharam como habitualmente, por isto ou por aquilo, principalmente por nada transformado em amendoins ou em árvore das patacas desaparecida.
O PS não confundiu o cariz das eleições, mantendo-se fiel à sua matriz solidária e socialista contra a desigualdade, após a vitória, sem ameaças de bota-abaixo, enquanto o PSD anunciou apoio a António Costa para o Conselho Europeu, após vaia monumental dos seus correligionários, permanecendo em união ou proximidade com os seus amigos das direitas.
O Governo liderado pelo PSD não durará toda a legislatura, se o PSD não se recentrar na social-democracia, sua matriz inicial na fundação pela ala liberal do regime da ditadura, e não acolher as propostas do PS que apenas procuram melhoria da qualidade de vida, combatendo a desigualdade, estimulando o crescimento económico e dialogando com as forças sindicais, sem cedência a irrealismos reivindicativos, a grupos monopolistas ou corporativos, ou ao ressurgimento do défice público.
A esquerda resiste
A fidalguia e os meninos ladinos e buliçosos da IL cavalgam o descontentamento da juventude, o povo coloca o(s) Chega(dos) assentando os pés na terra (o que não reconhecem por sequiosos do salazarismo), as tendências da esquerda BE e CDU cristalizam nos votos e nas causas, o Livre cresce timidamente pelo desenvolvimento sustentável, o PAN é um flop.
A Europa mantém a direita democrática predominante (não tanto como alguns temiam, proveniente da extrema direita), mas a esquerda resiste, permanecendo como uma esperança nas grandes economias e nos países do sul, e como uma realidade nos países nórdicos, estímulo para que a qualidade de vida não seja um exclusivo de sectores elitistas, mafiosos ou controladores do bem comum direccionado para oligarquias e aristocracias.
E já agora, senhoras e senhores deputados europeus, felicito-vos pela vossa eleição, propondo que não ignorem os movimentos sociais organizados credíveis, que são parte integrante da cidadania e do desenvolvimento, sem favor ou pedinchice, contributo reconhecido nas sociedades desenvolvidas como essencial para as políticas públicas justas.
E porque a solidariedade não pode ser uma palavra vã, ficava-lhes bem fazer um donativo à UNICEF e aos Médicos Sem Fronteiras, que lutam pela vida dos outros seres humanos, debilitados e crianças, filhos de um Deus menor, na Ucrânia martirizada e em Gaza massacrada.
(*) Médico e vereador do PS na Câmara de Coimbra