Desengane-se quem pense que o desenho administrativo da Bélgica é feito apenas com base na geografia, como sucede em Portugal e na generalidade dos países. A dimensão geográfica tem um papel, certamente, estando na raiz da divisão em três regiões: Flandres, Valónia e Bruxelas. Mas a esta camada acresce uma outra, que com ela se não confunde: a linguística. De uma maneira geral, na Flandres predomina o neerlandês, na Valónia o francês e na região de Bruxelas coexistem as duas línguas.
Há ainda a Comunidade Germanófona, situada essencialmente na Valónia, na província de Liège, ao longo da fronteira com a Alemanha. Embora os falantes de alemão correspondam a apenas sensivelmente 1% da população belga, o reconhecimento da comunidade é formal e tem consequências, nomeadamente a criação de um círculo eleitoral que elegerá um eurodeputado nas eleições europeias (a Comunidade Neerlandófona elege 13 eurodeputados e a Francófona oito). A importância da língua é sobretudo evidente em matérias de educação e culturais.
Todas as formas de ensino têm de estar integradas numa das três comunidades, e é a esse nível (não ao nível federal nem ao nível das regiões) que são definidas as regras gerais de funcionamento. Isso leva a resultados como calendários escolares díspares na cidade de Bruxelas, consoante a Comunidade correspondente da escola em causa seja a Neerlandófona ou a Francófona.
De forma ainda mais impressionante, aquando do atentado terrorista de 16 de Outubro de 2023 em Bruxelas, que vitimou duas pessoas tendo o atacante ficou a monte, no dia seguinte as escolas francófonas da capital estavam abertas, por a Comunidade Francófona ter entendido que a fuga do homicida não constituía um perigo para as crianças, ao passo que as escolas neerlandófonas da mesma cidade estavam fechadas, por a Comunidade Neerlandófona ter considerado que até à captura do fugitivo seria preferível manter as crianças em casa.
A ideia de que a Bélgica é um país bilingue (ou mesmo trilingue) é, na verdade, enganadora. A Bélgica é um país onde há duas línguas dominantes, mas onde poucos dominam ambas. A aprendizagem da “outra” língua não é fomentada, levando a resultados caricatos. Imagine-se uma pessoa de Paços de Ferreira ir a Elvas e não se conseguir fazer entender, acabando por recorrer à língua inglesa para fazer um pedido num restaurante ou obter uma informação nos correios.
Na Bélgica, este absurdo existe até (ou mesmo sobretudo…) nos serviços públicos, onde há o direito de recusar atender o cidadão numa língua que não a da comunidade linguística onde se insere o serviço. Por força das pulsões regionalistas (quase nacionalistas), esse direito é muitas vezes encarado como dever, levantando ainda mais alto o divisório muro educativo e cultural que o país ergueu e do qual cuida com desvelo.
Tal como um peixe não pensa muito na água, nós não pensamos muito na maravilha que é ter uma língua una, e ainda para mais antiga, rica e maravilhosa, em todo o território. Mas no próximo dia 10, em que se assinalam os 500 anos do nascimento de Luiz de Camões, celebremo-la bem alto. A língua portuguesa é parte essencial do que é ser-se português. E, porque não dizê-lo, é também um nobilíssimo privilégio.