70 organizações de seis movimentos cívicos, de norte a sul do País, promovem o Encontro Nacional de Cidadania pela Defesa dos Rios e da Água para definir medidas e formas de mobilização da cidadania para combater a seca, assegurar a protecção de rios e das águas subterrâneas e encontrar alternativas aos transvases e construção de novas barragens, açudes e dessalinizadoras. A iniciativa realiza-se na Casa da Cultura de Coimbra, este sábado, 18 de Maio, durante todo o dia.
O “Campeão das Províncias” antecipa o evento e conversou com Francisco Oliveira, porta-voz do movimento Mondego Vivo, uma das entidades envolvidas. O responsável refere que este primeiro encontro “é uma resposta às pressões actuais que promovem um uso insustentável dos recursos hídricos”, desde a construção de mais barragens às “auto-estradas da água”. “Queremos, também, alertar os cidadãos para a degradação do estado ecológico das massas de água”, sublinha.
A escolha de Coimbra para a realização do evento prende-se com o facto de a cidade dos estudantes ser atravessada pelo Mondego, o maior rio português. “As ameaças que sobre ele pairam são sérias. Algumas têm décadas, como a poluição resultante dos resíduos uraníferos, a contaminação industrial de Mangualde e Viseu, os açudes e barragens. Outras são mais recentes: os incêndios que deflagraram na Serra da Estrela em Agosto de 2022, a proposta de reactivação do projecto da barragem de Girabolhos-Bogueira e a contaminação por cianobactérias, detectada em Abril, e que atinge os rios Mondego, Dão e a Albufeira da Barragem da Aguieira. Por estes motivos acreditamos que Coimbra constitui um bom laboratório para a análise e discussão dos problemas dos rios e da água no País”, explica.
Para estas 70 organizações “é prioritário agir sobre as causas como forma de combater os efeitos”. “A água é um recurso natural que, como todos os outros, é limitado, pelo que, no planeamento das actividades humanas (a nível doméstico, urbano, industrial e agrícola), não podemos esquecer este facto. Fará sentido continuar a tentar satisfazer uma procura que não tem consciência desta realidade? É necessário, por um lado, garantir a disponibilidade da água. Isso implica proteger as águas subterrâneas, desenvolver um plano nacional de restauro fluvial, desenvolver processos de recuperação ecológica, definir regimes de caudais ecológicos, evitar o desperdício”, adianta Francisco Oliveira.
Seca e alterações climáticas
No que respeita à seca e às alterações climáticas, o responsável da Mondego Vivo, considera que as declarações dos agentes políticos, “algumas vezes, são contraditórias”. “Em 2022, por exemplo, o ministro do Ambiente afirmava que a seca em Portugal não é conjuntural, mas estrutural, mas, ao mesmo tempo, garantia que a água para consumo humano era suficiente para dois anos. O corolário de uma situação de seca estrutural não parece ser este, dado que num ano com uma pluviosidade acima do normal, permanecem as pressões para a construção de mais infraestruturas hidráulicas. Esta mesma ambiguidade se observa nas decisões políticas: falta de investimento na redução de perdas no ciclo urbano da água e na agricultura, no aproveitamento das águas residuais e na reabilitação de rios e ribeiras. Mas, simultaneamente, a falta de regulamentação que evite o aumento da agricultura superintensiva, a proliferação de barragens e açudes, a construção da dessalinizadora do Algarve”, afiança.
Quanto aos rios, reconhece que foram tomadas medidas como a reabilitação de rios e ribeiras, de forma a minimizar a erosão e as cheias, bem como a recuperação de cursos de água afetados pelos incêndios de 2017, a limpeza do leito do Tejo, o reforço do sistema de diques do Baixo Mondego. “Mas as ameaças continuam presentes” e passam, sobretudo, “pela dificuldade em conjugar o desenvolvimento urbano, viário e industrial com a preservação dos valores naturais. E também pela falta de articulação entre as Administrações Regionais Hidrográficas e as Câmaras Municipais. São, ainda preocupantes o assoreamento e as suas causas e a proliferação de espécies invasoras, nomeadamente as aquáticas”.
Por fim, no que respeita à literacia hídrica, Francisco Oliveira recorda que a educação ambiental só começou a ser integrada nos currículos escolares em meados dos anos 80 do século passado. “De aí para cá fizemos progressos. Os cidadãos estão mais atentos, mais sensibilizados. A informação ambiental está disponível em múltiplas plataformas (jornais, revistas, televisão, em grande número de sites), as associações ambientalistas proliferam pelo País”, salienta. Contudo, nas questões ambientais, “um problema sério é o da passagem da teoria à prática”. Por outro lado, sustenta que, com frequência, são assinaladas algumas falhas no modelo de educação ambiental que tem sido adoptado. Por esta razão, apela à “necessidade de articular a intervenção da escola com os diferentes contextos socioculturais” e a “importância de valorizar não apenas os conhecimentos, mas também as atitudes e valores”. Há também falhas na coordenação entre o Ministério da Educação e o do Ambiente, sendo fundamental “uma intervenção programada e continuada, e não meramente episódica”. “Penso que temos caminhado para um melhor conhecimento público dos problemas ambientais, para o aperfeiçoamento do sentido crítico das populações e para o desenvolvimento da sua capacidade de intervir nas decisões que afectam o ambiente e as suas condições de vida. Assim os poderes públicos soubessem corresponder”, remata.
A urgência de proteger o Mondego
Sendo Coimbra o local escolhido para este Encontro Nacional, o Mondego é, pois, um tema em cima da mesa. Francisco Oliveira garante que a travessia do rio ao longo da cidade “reveste-se de uma sensibilidade muito particular. Temos verificado uma grande dificuldade em conjugar expansão urbana e preservação dos valores naturais. A história destes últimos anos, comprova-o”. E dá alguns exemplos, lembrando que o executivo municipal anterior “concebeu o projecto de construir um campo de golfe na margem direita do rio, entre a Ponte da Portela e a praia fluvial do Rebolim. Ignorou factos elementares: estes terrenos pertencem ao domínio público hídrico, à Reserva Ecológica Nacional, à Reserva Agrícola Nacional, são abrangidos pelas zonas de protecção intermédia e alargada da Albufeira do Açude e da captação de água da Boavista, são leito de cheia”. Hoje, três anos após essa intervenção, “a erosão da margem na foz do Ceira agrava-se, as espécies infestantes tomam conta dos terrenos, são frequentes os despejos de resíduos e os actos de vandalismo. O processo de renaturalização, proposto pela Agência Portuguesa do Ambiente, ainda não se iniciou”, lamenta.
O porta-voz do Mondego Vivo recorda também que em Outubro de 2023, a Agência Portuguesa do Ambiente (APA) promoveu a empreitada de “Requalificação do rio Mondego entre a ponte da Portela e o Açude de Palheiros”. Pretendia-se, nos termos do contrato, “efectuar a remoção de uma ínsua com uma extensão aproximada de 540 metros e a requalificação da margem direita do rio Mondego, numa extensão de 300 metros entre a ponte da Portela e o Açude de Palheiros”. A intervenção na margem consistiu no corte e arranque de toda a vegetação existente, ripícola ou não. “Foi feita numa extensão não de 300 metros mas de cerca de 2.000 metros, e na margem direita mas também na esquerda. A remoção da ínsua supôs a remoção de largas toneladas de areia. As consequências para a biodiversidade, como se supõe, são difíceis de calcular. O corte de vegetação nas duas margens, o enrocamento de 350 metros de uma delas e a deslocação de areia, no outono, não terão deixado de contribuir para o assoreamento da albufeira do Açude”, afiança. Por fim, lembra que a Administração da Região Hidrográfica do Centro “nunca esclareceu” se foi ou não feito estudo de impacto ambiental. No site da APA não há qualquer referência, assegura.
Outro ponto preocupante é o Plano de Pormenor da Estação de Coimbra. O projectado viaduto rodoviário e a ponte ferroviária, que servirá a alta velocidade, “terão um profundo impacto na Mata Nacional do Choupal e no rio. Uma e outro são património natural, histórico, cultural que é indissociável da identidade da cidade. Não podem ser encarados como obstáculos ao desenvolvimento urbano, mas antes como realidades que propiciam o desenvolvimento, a qualidade de vida e a singularidade da cidade. A expansão urbana que ignore tudo isto é míope”, conclui Francisco Oliveira.
Ana Clara (Jornalista do “Campeão” em Lisboa)
Publicado na edição em papel do Campeão das Províncias de 16 de Maio de 2024