Coimbra  27 de Abril de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Joana Gil

Ao arrepio dos tempos

10 de Maio 2024

É corrente falar do que é hoje a República Democrática do Congo como uma antiga colónia belga. Mas a relação com a Bélgica é anterior a isso. Quando na Conferência de Berlim de 1885 as potências europeias dividiram entre si o continente africano, a região que hoje corresponde àquele país foi atribuída a Leopoldo II, então rei da Bélgica, como sua possessão particular. Leopoldo II animou-se a transmitir aos belgas e a toda a Europa de então o seu desejo de levar àqueles cerca de 2,5 milhões de quilómetros quadrados a prosperidade, e baptizou a sua possessão de “Estado Livre do Congo”, um nome bem em harmonia com os discursos com que então brindava quem o escutasse.

O regime de brutalidade que se seguiu foi de tal forma violento que, quando exposto na imprensa ocidental da época, deixou a Europa em choque. A região havia sido submetida a um modelo de exploração forçada sob alçada pessoal do rei Leopoldo II, que assim extraía fortunas em marfim e em borracha, o que havia de se revelar um importante contributo para o desenvolvimento da Bélgica e de algumas das suas cidades, nomeadamente Antuérpia. As atrocidades da exploração de Leopoldo II incluíam a amputação de mãos e pés a homens, mulheres e crianças quando as quotas de produção estabelecidas não eram alcançadas. O território havia sido distribuído a companhias que o explorassem, mas restavam 100km2 de floresta tropical geridas directamente pela coroa, onde, alegava Leopoldo II, iria proteger os indígenas da escravatura dos árabes. As violações, as mortes e a tortura eram ingredientes naturais do modelo de exploração dirigido pelo rei belga. A criação da “Force publique”, uma espécie de polícia pública destinada a garantir a obediência dos povos autóctones, completava o modelo. O terrível regime de quotas de produção impunha-se assim pela força numa terra sem lei nem justiça. Os congoleses que se opusessem ou não quisessem trabalhar nas condições impostas arriscavam a morte e aldeias inteiras podiam ser riscadas do mapa se não cooperassem. Estes crimes viriam a ser expostos no início do século XX pelo jornalista Edmund Dene Morel, desencadeando uma série de outros artigos na imprensa internacional e a indignação crescente da Europa com a natureza desumana da exploração daquele território por Leopoldo II. Como consequência, o modelo de possessão pessoal do rei foi substituído por um outro: em 1908 o Congo deixaria de ser propriedade da coroa belga a passaria a ser uma colónia da Bélgica, assim se mantendo até à independência, em 1960.

É sempre um exercício difícil e por vezes arrogante julgar o passado com os olhos de hoje. No caso de Leopoldo II, o exercício fica facilitado, porque foi julgado logo na época, pelo olhar das demais potências europeias, muitas delas coloniais, e foi vigorosamente censurado logo então. Em 2020, a estátua de Leopoldo II na cidade de Antuérpia foi derrubada por manifestantes no contexto de uma série de protestos globais relativamente ao racismo, presente e passado. Bem se percebe. A barbárie de Leopoldo II não tem perdão nem justificação. Não tinha em 2020, tal como não tinha já em finais do século XIX.

E depois disso? Depois disso o “Congo belga”, como era chamado após se tornar uma colónia da Bélgica, viveu dias difíceis, mantendo sempre o povo belga uma certa frieza relativamente àquele território. O caso dos chamados “Mestiços” do Congo é bem ilustrativo. Até à independência, as crianças ali nascidas filhas de mãe negra e pai branco eram retiradas às mães e entregues a orfanatos, habitualmente administrados por religiosas. Quando em 1960 o território passou a nação independente, essas crianças corriam um perigo sério de vida, já que dificilmente seriam aceites ou integradas no Estado recém-fundado. A solução encontrada pelas religiosas que delas cuidavam foi simplesmente enviá-las para a Bélgica, assegurando a sua sobrevivência, onde continuariam a crescer em orfanatos, privadas das suas raízes e da sua história pessoal. Neste momento encontram-se em curso processos judiciais contra o Estado belga pelo tratamento dado às então crianças mestiças. Aos olhos de 2024 esta prática de arrancar crianças, porventura fruto de violações, das mães e segregá-las com base na cor da pele é horrenda. Era-o já ao longo de todo o século XX.

(*) Em Bruxelas