O diagnóstico sobre os problemas que afectam a Justiça, o combate à corrupção e as expectativas sobre a nova ministra, Rita Júdice, são alguns dos temas que Eurico Reis, Juiz Desembargador Jubilado, analisa ao Campeão das Províncias.
Campeão das Províncias [CP]: Sempre teve um olhar crítico sobre a Justiça. Hoje, estando jubilado, que análise faz do funcionamento do sistema judiciário português?
Eurico Reis [ER]: Em primeiro lugar e como questão prévia, gostaria de sublinhar que, por pudor, prefiro não usar a palavra “Justiça” quando me estou a referir ao sistema judicial e ao sistema judiciário, uma vez que a satisfação desse ideal ético e social se tornou, nos tempos que correm, um objectivo que cada vez mais se torna difícil de alcançar. Por outro lado, a utilização da expressão “sistema de Justiça” permite a perpetuação de uma mistificação que, a meu ver, constitui um dos maiores obstáculos à resolução dos inúmeros problemas que impedem o sistema judicial e o sistema judiciário de cumprir as funções que a Constituição da República lhes atribui. Respondendo, então, ao que me é perguntado, lamentavelmente, não posso deixar de afirmar que as disfunções que comecei a apontar no já longínquo início da década de 90 do século XX sofreram um contínuo e progressivo agravamento, tornando cada vez mais desprotegidos os direitos daqueles que são, do ponto de vista social, os mais frágeis e desfavorecidos. Recordo que, em boa verdade, os únicos direitos de que cada um de nós é verdadeiramente titular são apenas aqueles relativamente aos quais nós dispomos das condições materiais que permitem o seu efectivo exercício.
[CP] Quais as virtudes e os constrangimentos de que padece actualmente a Justiça?
[ER] Tendo em conta que é extremamente difícil, e em alguns casos completamente impossível, aos sociologicamente desfavorecidos obter, em tempo útil, uma decisão judicial vinculativa que proteja os seus direitos que estão reconhecidos na letra da Lei contra os abusos daqueles que dispõem da força que lhes advém de um poder de facto que a sua posição social lhes permite usufruir, diria que são poucas ou nenhumas as virtudes. E, em minha opinião, esse é o principal problema que afecta o sistema judicial e o sistema judiciário, sendo que, por a lista ser tão extensa, não me é aqui possível enumerar os muitos constrangimentos que afectam esses dois sistemas.
[CP] Estamos em 2024. Alguns dos problemas da Justiça continuam a ser os mesmos de há 10 anos, com a morosidade sempre no topo. Por que razão continuamos a ter uma Justiça lenta?
[ER]: Os problemas do sistema judicial e do sistema judiciário, sendo que a morosidade dos processos é apenas um deles, já se arrastam há décadas sem que tenha existido até agora (e, muito sinceramente, não espero que tal venha a acontecer em breve) vontade política para encontrar soluções realmente efectivas para essas disfuncionalidades. Quando alguma coisa funciona mal durante tanto tempo é porque deve estar a funcionar bem para alguém. A morosidade é uma consequência do carácter burocrático e entorpecedor não apenas dos vários códigos de processo, mas, de igual modo, de toda a estrutura funcional dos Tribunais e das Delegações do Ministério Público (MP).
[CP] Estão por fazer muitas reformas estruturais? Quais considera mais prementes e necessárias?
[ER]: Mais uma vez, a lista é demasiado longa, mas as mais prementes e indispensáveis são as reformas relativas à estrutura e ao funcionamento dos vários Conselhos Superiores, e à escolha das pessoas que ocupam lugares nesses organismos, mas também à escolha da pessoa que exerce a função, que é de uma enorme relevância, de Director do CEJ (Centro de Estudos Judiciários), nomeadamente quanto ao modo como todas essas entidades devem prestar contas da sua actividade. E uma radical simplificação de todos os códigos de processo também seria bem-vinda.
“Violação do segredo de justiça é um crime profundamente hediondo”
[CP]: Como olha para a forma como a Justiça tem actuado nos processos de corrupção?
[ER]: A corrupção é um cancro profundamente enraizado na sociedade que impede que o País se desenvolva como as suas potencialidades, de outro modo, lhe permitiriam fazer. Todavia, em minha opinião, nunca foi feito um efectivo combate às raízes sociais desse mal e as investigações e os processos judiciais que foram e estão a ser desencadeados não serviram para o erradicar.
[CP]: Quais têm e/ou são os principais entraves à investigação deste crime? Há falta de meios de combate?
[ER] A falta de meios é um dos entraves. Contudo, em minha opinião, as investigações de natureza criminal não serão a melhor maneira de combater a corrupção. A corrupção é um negócio, razão pela qual, a meu ver, haverá, isso sim, que encontrar formas de esse negócio deixar de ser lucrativo.
[CP] No caso da Operação Influencer (para citar um dos mais recentes), como analisa a forma como o MP actuou?
[ER]: Muito haveria para dizer acerca desse caso, mas prefiro apenas sublinhar que a violação do segredo de justiça é um crime profundamente hediondo que dá corpo à maior de todas as corrupções, que é a corrupção moral, e que abala profundamente toda a estrutura do Estado de Direito e que o parágrafo que motivou a demissão do primeiro-ministro é, sob o ponto de vista técnico-jurídico, um erro grave.
[CP] A Justiça tem sido politizada ou estamos mais perante a chamada politização da Justiça?
[ER]: Já há muitos anos que a actuação do MP tem consequências políticas. Apenas desta vez essas consequências atingiram um patamar de gravidade nunca alcançado.
[CP]: Nas últimas décadas instalou-se uma sensação de que há a justiça dos poderosos e a dos comuns. Há um problema sistémico de corrupção no País ou é uma questão de percepção e ilusão mediáticas?
[ER]: A sociedade não é igualitária e, por essa razão, os socialmente mais poderosos (por via do dinheiro, mas não só) usufruirão sempre de mais vantagens, incluindo quando têm de lidar com o sistema judicial e o sistema judiciário, do que aqueles que são mais desfavorecidos. E porque esses sistemas são burocráticos e entorpecedores, essas vantagens tornam-se maiores e mais nítidas.
[CP]: Olhando para o actual momento – tendo em conta também a instabilidade internacional – que futuro vê para Portugal e que papel tem a Justiça? Como olha para a escolha de Rita Júdice para ministra da Justiça e que desafios mais prementes terá pela frente?
[ER]: Não partilho a tese do lobo na conhecida fábula de La Fontaine ‘O Lobo e o Cordeiro’ e, portanto, nunca julgo as pessoas pelos progenitores que têm, mas sim pelos actos concretos que cada um ou cada uma praticam. Considero a Senhora Ministra uma pessoa estimável, mas não conheço o seu pensamento estratégico acerca dos problemas do sistema judicial e do sistema judiciário, pelo que terei de aguardar pela apresentação do programa do Governo para o sector. Todavia, pela forma como se iniciou a presente legislatura, penso que existe uma elevada probabilidade de que ocorram novas eleições parlamentares no início de 2025, o que, também com um grau elevado de probabilidade, tornará mais difícil o desenvolvimento das reformas de fundo que a cada dia que passa se tornam mais urgentes. Quando muito, teremos mais remendos quando o que é necessário é um fato novo. Não é que resolver injustiças salariais ou criar incentivos para o recrutamento de pessoas para suprir as faltas no preenchimento dos quadros não sejam questões sérias para as quais há que encontrar soluções, mas, em minha opinião, o que é verdadeiramente necessário é que seja desencadeado um debate muito profundo e alargado, como nunca houve até agora, acerca do que são e para que servem, o sistema judicial e o sistema judiciário, debate esse no qual é indispensável que, de alguma forma – naturalmente, de forma organizada -, toda a sociedade participe e que não seja deixado nas mãos dos “iluminados” do costume. Com ou sem guerras, localizadas, regionais ou até uma mundial (infelizmente, a hipótese de uma das guerras actualmente em curso poder escalar para uma guerra mundial não pode ser liminarmente afastada e a recente homilia pascal do Papa Francisco veio alertar-nos para esse perigo), não estou optimista. Contudo, essa situação não deve impedir-nos, enquanto comunidade, de tentar encontrar soluções reais e efectivas para esses tão prementes problemas. Embora todos devamos ter a consciência de que isso não depende só dela, vamos ver se a nova ministra da Justiça será capaz de dar os primeiros passos nessa direcção.
O juiz “sem medo”
Combativo, sem nunca ter medo de dizer o que pensa, Eurico Reis nasceu a 15 de Dezembro de 1956, em Lisboa, tendo-se licenciado em Direito em Agosto de 1980 na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa. Exerceu funções no Tribunal de Instrução Criminal de Faro, no Tribunal do Trabalho do Funchal (com jurisdição sobre toda a área da RAM), no Tribunal Judicial de Cascais, de que foi presidente administrativo, no Tribunal Cível de Lisboa, no Tribunal da Relação de Évora e, desde Setembro de 2011 até à data da sua jubilação (1 de Março de 2022) no Tribunal da Relação de Lisboa, tendo aí exercido funções na 1.ª Secção (Cível) e na 10.ª Secção (Propriedade Intelectual, Concorrência, Regulação e Supervisão), das quais foi presidente. Liderou o Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, por nomeação da AR desde Maio de 2007 até Fevereiro de 2018, tendo cessado funções por demissão voluntária em 27 de Abril de 2018, na sequência de acórdão do Tribunal Constitucional proferido três dias antes, acerca da gestação de substituição. É presidente da Associação Movimento Cívico Não Apaguem a Memória (NAM) e vice-presidente da Liga Portuguesa dos Direitos Humanos – Civitas (LPDH -C).
Ana Clara (Jornalista do “Campeão” em Lisboa)
Entrevista publicada na edição em papel do Campeão das Províncias de 1 de Maio de 2024