Cristina Freitas é directora do Centro de Documentação 25 de Abril e é professora na Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde lecciona disciplinas nos três ciclos de estudos em Ciência da Informação, orientando dissertações de mestrado, teses de doutoramento e estágios extracurriculares. Actualmente, desempenha também o cargo de directora do Arquivo da Universidade de Coimbra e integra várias instituições de investigação, destacando-se o Centro de Investigação CEIS20 da Universidade de Coimbra e os grupos ARBIDOC da Universidad de León e Teresa Andrés da Universidad de Salamanca.
Campeão das Províncias [CP]: Estamos a comemorar os 50 anos do 25 de Abril. Imagino que o Centro de Documentação esteja agora no olho do furacão.
Cristina Freitas [CF]: Utilizo precisamente essa expressão. Estamos mesmo no olho do furacão. Temos uma equipa pequena para um evento deste porte, mas estamos a conseguir dar resposta aos pedidos e a difundir a documentação do 25 de Abril por todos os cantos do território nacional e também além-fronteiras. Para as pessoas perceberem o legado que Coimbra possui, porque este é o único centro de documentação sobre o 25 de Abril do país, é necessário entender quem somos. Nós também iremos comemorar, este ano, o nosso próprio aniversário, pois enquanto o 25 de Abril celebra 50 anos, em Dezembro próximo, celebramos 40 anos de existência. Esta instituição nasceu de uma vontade muito grande de preservar, por assim dizer, a memória do 25 de Abril. A Revolução é o nosso tema central, mas há outros temas muito importantes reflectidos nas nossas coleções.
[CP] O que se pode encontrar no Centro de Documentação?
[CF]: Muitas coisas. A primeira ressalva que quero fazer é que nós não somos um centro de investigação. Muitas vezes as pessoas confundem aquele com um centro de documentação, que é aquilo que somos e, como tal, o que fazemos é facultar a informação para os investigadores. Um centro de documentação pode recolher diversos tipos de documentos associados a um tema ou um assunto em particular. No nosso caso, ele nasceu em torno desse tema central, que é o movimento revolucionário do 25 de Abril. Temos, por exemplo, registos sonoros, transmissões de rádio associadas ao 25 de Abril e elas são muito requisitadas. Algumas já foram digitalizadas, outras ainda estão na sua forma analógica original. Temos registos audiovisuais e temos, também, um conjunto único que é propriedade e autoria do Centro, que são os registos de história oral. Trata-se de entrevistas que foram feitas com personalidades seleccionadas, muitas das quais já não se encontram entre nós. Foram realizadas longas entrevistas, que envolveram estudo, e eu diria que esta é uma das jóias da coroa do Centro, pelo facto de ser este um material único e muito procurado. Temos também documentos clássicos, em papel, como por exemplo, o mapa e o plano das operações militares, cartas e aerogramas que foram trocados entre familiares e militares envolvidos na guerra colonial, muitas séries de fotografias, cartazes, murais, autocolantes e jornais de época. Nós temos uma colecção muito grande de recortes de jornais e continuamos a recortar esse tipo de informação todos os dias para ampliar a colecção. Por isso, exercemos uma função de curadoria muito importante, nos cerca de quatro milhões de documentos físicos que possuímos. É fundamental garantir a sua preservação, incluindo o controlo de humidade e temperatura, evitando danos aos documentos mais sensíveis como fotografias e películas. Além disso, realizamos limpezas regulares para remover o pó e controlamos a proliferação de pragas. O trabalho de curadoria também se estende ao digital, incluindo a manutenção e substituição de suportes e mesmo de servidores obsoletos. É um desafio complexo, mas necessário para garantir a integridade desse muito valioso acervo.
[CP]: Que exposição é essa que está a percorrer o país?
[CF]: “O Legado de um Cravo”, como se chama, é composto por 12 painéis que contam o antes, durante e após o 25 de Abril. Todos esses conteúdos são certificados. Vivemos numa era em que combatemos as fake news e é muito importante trabalhar com fontes seguras. Penso que o sucesso desta exposição vai em dois sentidos únicos. Primeiro, porque conseguiu-se reduzir este evento extraordinário a 12 painéis e divulgá-lo de uma maneira pedagógica e atractiva para um público variado. Segundo, porque não há paralelismo entre este movimento e outros que ocorreram antes ou depois. É um movimento único. A pesquisa feita nas fontes documentais foi muito apurada e chegou-se a documentos preciosos, que mostram diferentes perspectivas, principalmente a popular. Isso torna a exposição mais próxima dos cidadãos e creio ser a intenção por trás da sua concepção. Ela resulta de uma parceria entre nós, o Museu do Aljube e a empresa Alumira. Eles criaram a exposição e nos cederam uma reprodução para divulgarmos. A nossa já está com lotação esgotada até ao próximo ano, mas encaminhamos as pessoas interessadas para a empresa produtora, que atende aos pedidos, para que “O Legado” chegue a quem o solicita.
[CP]: O Centro vai comemorar os 50 anos da Revolução, mas também 40 anos de existência. O que têm programado?
[CF]: Assumi a Direcção do Centro há quase um ano, em Maio de 2023. Começámos a trabalhar para o que seria o cinquentenário do movimento, por isso estamos a acompanhar um pouco o que se passa pelo país. Existe uma Comissão nacional, como sabem, em torno das comemorações, e essa Comissão vai celebrar o 25 de Abril até 2026. O Centro também vai prolongar as comemorações pelo mesmo período. Neste momento, privilegiamos responder a todas as solicitações que temos em mãos. Existem muitos pedidos de autores, curadores ou produtores, que vão publicar livros, criar exposições ou documentários sobre o 25 de Abril e precisam das nossas imagens, áudios e documentos. Temos de responder a essas pessoas, ou seja, temos de colocar o Movimento em evidência, mais do que a própria instituição. Portanto, decidimos dilatar, no tempo, as nossas iniciativas. No próprio dia 25 de abril, haverá uma atividade singela, organizada com a Liga dos Combatentes e a Rebobinar, no nosso edifício e nos Claustros, na rua da Sofia, no Colégio da Graça. Ali, faremos visitas guiadas, leituras de poemas menos conhecidos, por jovens, filhos de colaboradores nossos, apresentações do Coro das Mulheres da Fábrica e da Tuna Souselense. Para além desse dia, continuaremos o nosso trabalho de cedência de exposições itinerantes e de recolha sistemática de informação, que será tratada, criando um dossiê sobre as comemorações, que disponibilizaremos posteriormente, para a consulta de jornalistas, investigadores e do público do Centro.
[CP]: No Centro existe também documentação antes do 25 de Abril?
[CF]: Sim, porque para entendermos o facto histórico em si, temos de recuar um pouco no tempo. E também avançar um pouco. Recolhemos a documentação desse modo e muitas vezes perguntam-nos quais são os nossos critérios, porque estamos a lidar com temas muito sensíveis, que envolvem a comunidade, a população, a política, a economia e a sociedade e porque somos um centro de documentação. Um dos critérios que utilizamos é o cronológico. Então, vamos um pouco mais atrás, no tempo, sendo por isso que o Centro alargou o seu espectro, inicialmente situado em torno apenas do Movimento de 1974. E aí, claro, entram em cena também os nossos critérios geográficos e temáticos. Não podemos fugir ao nosso objecto de trabalho. É importante dizer que qualquer instituição da nossa natureza, por exemplo, a Biblioteca Nacional, adopta critérios selectivos como os que nós também adotamos. O utilizador tem de confiar na instituição, quer dizer, não podemos ser tendenciosos. Claro que há sempre uma subjectividade por trás das recolhas que nós fazemos, mas temos de controlar essa subjectividade com critérios objectivos de seleção de temas e documentos.
[CP]: É também directora do Arquivo da Universidade de Coimbra. Realizam-se por lá muitas iniciativas?
[CF]: Sim, convém referir que este Arquivo tem quase 11 km de acervo. Hoje em dia, os arquivos estão a abrir-se mais para a sociedade, o que é importante. Posso mencionar as “Conversas Abertas”, uma rubrica que herdámos do Dr. Rodrigues Costa e que já vai, connosco, a caminho do quinto ano. Ela acontece sempre de Janeiro a Junho, na última sexta-feira do mês. Se houver algum feriado que coincida nesse dia, nós transferimos a sessão para a sexta-feira imediatamente anterior. Esta rubrica tem sido muito importante para nós, pois nas “Conversas Abertas” abordamos temas cruciais de Coimbra e de interesse da comunidade que aqui vive e trabalha. Este ano têm sido muito concorridas as conferências. Na última sessão, que foi sobre os banhos judaicos em Coimbra, tivemos de arranjar mais cadeiras, porque já não havia lugares para as pessoas se sentarem. Agora, vamos ter outra sessão sobre património (casas quinhentistas). Vamos ter, ainda, uma última sessão, excepcionalmente em Julho, muito interessante, onde activistas ambientais irão falar sobre iniciativas de preservação do meio ambiente nas várias zonas e serras do distrito de Coimbra.
Entrevista: Luís Santos/ Joana Alvim
Publicada na edição do “Campeão” em papel de quinta-feira, dia 25 de Abril de 2024