Hoje, em homenagem ao 25 de Abril, falarei da vida em 24 de Abril, não para promoção, porque sou um velho (tenho prazo de validade limitado), da vida política já não tenho ilusões, e não preciso ocupação (muito menos qualquer função), mas para conhecimento de quem não viveu essa época difícil.
Sou um sobrevivente do 24 e do 25 de Abril. Penso que serei o único lutador pela liberdade e resistente da ditadura fascista de Salazar e Caetano, na Vereação da Câmara Municipal de Coimbra.
Aos 14 anos, organizava sessões de audição da Rádio Portugal Livre – A Voz da Liberdade, emitida em Argel, com locução de Manuel Alegre, entre as 00h15 e a 1h00, após o que fabricava cartazes em folhas A4 com texto escrito por paus embebidos em tinteiros e utilização de luvas para não ser identificado.
Aos 15 anos, fui apoiante e activista da CDE (1969), fui militante dos Núcleos Sindicais de Base do Movimento Estudantil de Coimbra desde 1971, fui membro da Comissão Pró-Reabertura da Associação Académica de Coimbra em 1972, participei no Congresso da Oposição Democrática em Aveiro, em Abril de 1973, e fui preso político pela PIDE em 22 de Outubro de 1973, que após tortura, me “recomendou” para Caxias (não consumado), entre outras milhentas acções revolucionárias.
Para o 25 de Abril contribuí, vivenciei (não me foi contado…) e participei na sua implantação – e não me arrependo, tendo agido depois em Acção Humanitária e Ajuda ao Desenvolvimento pelo mundo durante 23 anos.
Como era o dia 24 de Abril em 1974 e a vida de estudante?
Eu era estudante universitário (e, portanto, era da élite), mas tinha 1.300 escudos (6,5 euros) por mês, andava a pé ou de trolley. Eu e os meus amigos tínhamos de sair em paragens diferentes, porque éramos portadores de “comunicados” (proibidos), referentes à luta estudantil e ao combate ao regime fascista.
Eram receados os “ajuntamentos de mais de uma pessoa” (expressão ridícula, obviamente), era proibido parar ou sentarmo-nos no jardim da AAC e a própria AAC só existia parcialmente; éramos revistados nos cafés da Praça da República (Piolho, Tropical e Moçambique – a Clepsidra era uma ilha); nos cafés havia habitualmente um “estudante” na mesa ao lado, com mais do dobro da nossa idade e ar circunspecto ou afável (eram bufos ou agentes da PIDE – a polícia política).
Reuníamos (parece tão simples hoje) e íamos ao cinema (Gil Vicente, Avenida e Tivoli), mas muitas vezes as sessões eram em caves de prédios e sítios esconsos, porque muitos filmes e as reuniões eram proibidos (falava-se de revoluções, do Maio de 68 em França, da crise académica de 69 em Coimbra, da guerra e da morte de soldados portugueses e de guerrilheiros anti-coloniais).
Havia cargas policiais sobre as manifestações dos estudantes, desde a Alta à Praça 8 de Maio, fosse sobre protestos pedagógicos, reivindicação da liberdade de expressão e democracia ou actos de insubmissão perante a injustiça social e a guerra colonial, para onde os estudantes “mal comportados” eram mobilizados.
Convivíamos interpares, claro, mas o meu quarto de estudante era um barril de pólvora (não tinha armas, mas tinha milhares de textos de várias organizações clandestinas). Teve de ser esvaziado de conteúdos, após ter participado em manifestações, sessões da Oposição e subsequente prisão política pela PIDE, porque tinha protestado contra essa guerra “colonial” (até as palavras eram proibidas…).
Era até estranho que os estudantes “de Coimbra” tivessem amigos trabalhadores (designação muito suspeita), ainda por cima da zona industrial, quando a sua obrigação era “estudar”, para serem quadros “a bem da Nação”, e não se misturarem com o povo (que expressão pejorativa…).
Ausentava-me das aulas (a greve era proibida…), na Tomada da Bastilha e em outras efemérides, tínhamos reuniões clandestinas às 6 da manhã (porque depois havia aulas), distribuíamos panfletos de rebelião, organizávamos contestação do regime, etc.
O passado é o passado, o que importa (sempre) é o futuro. Respeitando a geração que conquistou a liberdade, a justiça social e a democracia, as novas gerações devem ter acesso integral aos direitos humanos.
Hoje, o País é um todo (sem discriminação de estudantes e trabalhadores e com democratização do ensino), a liberdade de expressão do pensamento já não é ficção, os direitos e regalias sociais foram sendo conquistados, o Desenvolvimento vai-se consolidando, o ambiente é valorizado, revalorizado ou até contestado, a vida saudável é estimulada.
No futuro, não estarei cá, naturalmente. Estou velho. Mas onde estiver, ainda reconhecerei o contributo das novas gerações, para que Coimbra e Portugal não voltem ao 24 de Abril (há riscos…), para que os mesmos valores de consciência crítica e vontade de criar sejam úteis (a quem precisa), para que mais Desenvolvimento Sustentável seja apreciado (por todas e por todos), por novas causas solidárias que sejam emergentes dos novos problemas e soluções (pela humanidade e pela igualdade de oportunidades).
Viva o 25 de Abril!
(*) Médico