Comparar o atual regime político português, implantado pela revolução do 25 de Abril de 1974, com aquele que essa mesma revolução derrubou é um exercício falacioso que pouco nos diz sobre as virtudes e os defeitos de ambos.
Qualquer comparação só seria virtuosa se fosse feita com o regime que vigoraria hoje em Portugal se não tivesse havido a revolução do 25 de Abril. Como seria hoje o nosso país se o regime do Estado Novo não tivesse sido derrubado em 1974? Como teria evoluído esse regime nos 50 anos que entretanto decorreram?
É claro que o atual regime político é melhor do que aquele que vigorava em 24 de abril de 1974. Mas seria realmente melhor do que o regime político que existiria hoje em Portugal se não tivesse havido o 25 de Abril?
Se tivermos em conta a evolução do regime político que vigorava em Espanha em 1974 (em tudo semelhante ao nosso), acredito que o nosso país não seria hoje muito diferente. Talvez até os portugueses vivessem melhor do que vivem agora, atento o atual nível de vida dos espanhóis em relação aos portugueses.
Mas, é óbvio que essa comparação, em si mesma, será sempre especulativa e, por isso, eu prefiro juntar outra referência comparativa: como seria hoje Portugal se as esperanças nascidas em abril de 1974 se tivessem concretizado? Como viveríamos hoje se as promessas que foram feitas tivessem sido cumpridas?
Aqui não tenho dúvidas em afirmar que o país estaria mais desenvolvido e todos viveríamos muito melhor. Seguramente, teríamos melhor saúde, melhor ensino, mais e melhor habitação, melhor, muito melhor jornalismo e informação. Estou certo de que, se as promessas e esperanças nascidas com a Revolução dos Cravos tivessem sido realizadas, haveria mais tolerância, menos censura e menos controle dos cidadãos, mais participação cívica, menos alienação e, sobretudo, haveria mais verdade e menos manipulação na comunicação social.
Vejamos algumas factos ilustrando a degradação do nosso modelo político-económico.
1 – Há pessoas, hoje, em Portugal, que passam fome. E o problema só não se tornou insuportavelmente escandaloso devido à caridade de muitas pessoas que periodicamente, à porta dos supermercados, doam alimentos a instituições particulares especialmente criadas para suprir as insuficiências do nosso modelo político-económico. Este modelo liberal, assente em premissas neofisiocratas e neocolbertistas, nasceu com o Tratado de Maastricht nos anos 90 e tem como consequências mais visíveis o empobrecimento generalizado das pessoas (trabalhadores por conta de outrem, comerciantes tradicionais, profissões liberais, etc.), o enriquecimento cupidinoso dos oligarcas DDT (Donos Disto Tudo) e a generalização da mercadoria. Hoje tudo se mercadeja nesse Olimpo económico que é o mercado: a vida, a morte, o amor, o sexo, o útero das mulheres pobres, a domesticação das crianças, o desterro dos idosos, as crenças, os afetos, os filhos, enfim, tudo se compra e vende num mercado global, sem regulação nem regras.
Uma nova luta de classes
2 – A luta entre a burguesia e o proletariado que, em 1974, animava os debates politico-ideológicos foi hoje substituída por uma nova luta de classes, ou seja, entre aquelas pessoas (em número cada vez menor) que exercem uma atividade económica por conta própria ou alheia, produzindo certos serviços ou mercadorias que vendem no mercado por um determinado preço sobre o qual o estado lança vários impostos diretos e indiretos e aqueloutras (em número cada vez maior) que vivem desses impostos. Criou-se uma vasta rede clientelar de parasitas que proliferam à volta do poder político, sobretudo em Lisboa, que vive à custa desses impostos.
3 – A liberdade de imprensa tornou-se uma verdadeira libertinagem de imprensa, em que se mente, manipula, insulta, amesquinha, achincalha, inventa, abafa, conspira, tudo sem qualquer pudor e sem quaisquer consequências. A informação é controlada por uma rede semiclandestina de agências de comunicação que são entidades comerciais cujo escopo é colocar «boa informação» nos órgãos de comunicação social. Mas, pergunta-se, «boa informação» para quem? Obviamente, para os clientes que contratam essas agências, os principais dos quais são, no que toca à informação política, o governo e os partidos políticos; no que diz respeito à informação económica, as grandes empresas e grupos económicos e financeiros; e, quanto à informação desportiva, são os grandes clubes de futebol e as suas SAD’s (sociedades anónimas desportivas). No tempo em que fui Bastonário dos Advogados, até o próprio Supremo Tribunal de Justiça contratou uma agência de comunicação (por sinal a mesma contratada pelo Sindicatos dos Juízes) para ter «boas notícias» na comunicação social. É óbvio que no conceito de «boa informação» para os clientes das agências de comunicação está incluída a «má informação» para os concorrentes e adversários desses clientes.
Por isso, hoje, a comunicação social não nos informa do que acontece mas sim do que os clientes das agências de comunicação dizem que aconteceu. E quando não é possível escamotear um determinado facto, então o mesmo logo é ofuscado por torrentes infindáveis de opiniões e análises que nos impedem de saber com clareza o que realmente se passou.
Vejamos: Um ministro negoceia com o primeiro-ministro a sua saída do executivo exigindo que a sua filha seja ministra e logo os jornalistas de plantão e os opinadores de serviço defendem que a filha querida do Sr. ministro não pode ser prejudicada por ser filha de quem é. E isso ainda antes de os portugueses serem informados do que realmente se estava a passar.
Uma enorme patranha
Outro exemplo: alguns membros do contingente militar português ao serviço da ONU em um país africano envolveram-se em atividades criminosas. Quando, algum tempo depois, o assunto se torna público, o primeiro-ministro alega que não sabia de nada, assim fugindo à responsabilidade política de não ter feito o que devia. Como – interrogou-se o país – era possível não saber se o ministro da defesa informara a ONU? Então, todos os envolvidos acordaram entre si uma das mais estúpidas desculpas alguma vez inventada por um mau pagador: o Sr. ministro da defesa decidira poupar o Sr. primeiro-ministro à maçada de ter conhecimento dos factos, tendo informado a ONU mas não o primeiro-ministro (não fosse isso perturbar-lhe o sono) que o propusera para o cargo e de quem dependia funcionalmente.
Tratou-se, é óbvio, de uma das mais descaradas patranhas políticas da nossa democracia, mas, a generalidade dos jornalistas e dos profissionais da opinião, em vez de informar com verdade e comentar com objetividade, assumiram essa mentira como sendo verdade e logo se lançaram em percucientes antevisões sobre o que iria acontecer ao ministro mentiroso. Como iria o PM reagir à omissão do seu subordinado? Pois bem, o PM «puniu» o ministro da defesa inadimplente promovendo-o a ministro dos negócios estrangeiros. Na verdade, o ministro mentira não ao PM mas ao país. E logo o assunto foi abafado por outra estapafurdice jornalística, talvez um penalty que ficou por marcar num qualquer derby futebolístico.
Os dois exemplos são paradigmáticos da técnica usada pelos jornalistas e comentadores às ordens das agências de comunicação. Tal como o idiota que, segundo uma velha história chinesa, olhava para o dedo quando alguém lhe apontava a lua, os nossos órgãos de informação tentam desviar a atenção de um assunto importante que lhes não interessa centrando-se apenas no acessório. Não sendo inteligentes também não são idiotas – são apenas espertos, estando, pois, à altura do país em que proliferam.
É assim que, em vez de jornalistas temos, então, profissionais da opinião que, pronunciando-se sobre tudo e mais alguma coisa, tentam condicionar a nossa compreensão da realidade. Esta é manipulada de acordo com interesses (políticos, económicos, ideológicos, religiosos ou outros) que nada têm a ver com o cristalino interesse público de informar com verdade, com objetividade e com isenção, que foi uma das mais emblemáticas esperanças de Abril. Em vez de informação temos propaganda (na informação política) e publicidade (na informação económica).
Corrupção no jornalismo
Mas qual é então o segredo do sucesso das agências de comunicação? Qual é o seu fabuloso Know-how? Muito simples, um verdadeiro ovo de Colombo: pagar aos jornalistas (principalmente os hierarcas das redações) para que eles façam e publiquem «informação» favorável aos seus clientes. Sim, as agências de comunicação transformaram os jornalistas portugueses na classe profissional mais corrupta do país, situação com a qual pactuam todos os responsáveis políticos (no poder ou na oposição), bem como o próprio Ministério Público que se tem recusado a investigar o pântano da corrupção na comunicação social. Os jornalistas já eram uma das classes profissionais mais corporativa de Portugal mas, com a generalização das agências de comunicação, passaram a ser também a classe mais corrupta.
A principal consequência dessa corrupção generalizada é o enfraquecimento da própria democracia. Sem informação independente, objetiva e imparcial, os cidadãos não podem sindicar adequadamente o exercício do poder. Sem informação objetiva e isenta, os cidadãos ficam impedidos de fazerem conscientemente as escolhas democráticas a que periodicamente são chamados. Por isso, a corrupção dos jornalistas é tanto ou mais perigosa para a democracia do que a corrupção dos agentes políticos. Hoje, em Portugal, a liberdade de informação e a democracia estão numa relação de dependência sinalagmática entre si: a força ou a fragilidade de uma é causa e consequência da força ou fragilidade da outra. Por isso, ambas definham asfixiando-se mutuamente num abraço mortal.
Outra consequência é que a procura da «mercadoria» produzida por esse tipo de jornalismo baixou consideravelmente no «mercado» da informação. Ou seja: as pessoas viraram as costas a essa mixórdia fazendo com que o preço pelo qual é vendida no mercado não chegue, sequer, para pagar os ordenados de quem a produz. Em vez de corrigirem o desvio que originou esse facto, os agentes informativos viram-se, cada vez mais descaradamente, para o governo a fim de conseguirem as tenças de que precisam para sobreviver. E, também aqui, mais uma vez, à custa dos impostos gerados por aqueles que produzem bens ou serviços com valor de mercado.
4 – Mas é no próprio sistema político-partidário que a degradação do regime nascido com o 25 de Abril mais se evidencia. É confrangedora a mediocridade dos dirigentes políticos portugueses (e – já agora! – europeus), incluindo governantes e titulares dos mais altos cargos da República. O modelo democrático atual não foi concebido para atrair os indivíduos mais aptos e mais honestos (a maioria dos quais, aliás, se afastou deliberadamente da atividade política), antes privilegia os piores, os mais venais. Agora, os eleitos são, em regra, os que mais mentem e mais prometem, os mais videirinhos.
A nova nobreza política
Após o 25 de Abril e nos anos que se lhe seguiram, os partidos políticos eram financiados pelos respetivos filiados. A sociedade organizava-se politicamente em partidos a fim de os cidadãos melhor participarem na vida coletiva. Porém, os partidos degradaram-se, viraram-se para as respetivas clientelas e passaram a ignorar, de facto, os interesses dos cidadãos. Estes foram-se afastando da política que passou a desenvolver-se numa redoma, cada vez mais distante dos cidadãos. O verdeiro elã dos partidos políticos portugueses é, hoje, a espuma que eles próprios produzem com a sua atividade espalhafatosa dentro dessa redoma.
Também aqui, já não são os seus filiados que, hoje, suportam a atividade dos partidos políticos. O estado mais uma vez foi chamado para financiá-los, também à custa dos impostos gerados por queles que produzem bens ou serviços com valor de mercado. E são centenas de milhões de euros de que anualmente se beneficiam os partidos e suas redes clientelares.
Os agentes políticos substituíram hoje a velha nobreza da Idade Média: uma classe sem qualquer utilidade social, parasitária, que nada produzia, mas que vivia muito acima do nível de vida médio da época e que, hoje, também vive à custa dos impostos daqueles que geram riqueza. Outrora, essa nobreza recebia terras e títulos nobiliárquicos («Foge cão, que te fazem barão! Para onde, se me fazem conde?»), enquanto que a «nobreza política» atual recebe cargos e sinecuras políticas diversos, bem como os mais variados «tachos» na administração pública. E tudo isso não é devido aos seus méritos e competências, mas sim à fidelidade aos chefes políticos, tal como outrora a fidelidade ao rei era premiada com terras e títulos.
O sistema político-partidário criou uma gigantesca rede clientelar que se estende por vários setores nomeadamente, economia, comunicação social, cultura, desporto e, claro, a própria atividade política. Trata-se de uma enorme meda de aduladores que vivem exclusivamente da sua aptidão para bajular, intrigar e trair.
Ausência de contrapoderes
A ameaça que isso representa para a democracia não é tida em conta por ninguém. Por tudo isso, os dirigentes políticos e partidários portugueses (e europeus) lembram a velha alegoria da dança macabra em que as pessoas, dançando e cantando, seguem alegres atrás da morte, ignorantes de que esta as conduz para o túmulo.
5 – Finalmente, uma das mais nefastas consequências da degenerescência democrática em Portugal é a ausência de contrapoderes, ou seja, ausência daquele tipo de poderes que emergem diretamente da sociedade civil e que não pretendem substituir-se aos poderes institucionais, mas apenas escrutiná-los, moderá-los e corrigir os seus desvios. Ora, o principal contrapoder de qualquer sociedade democrática – a comunicação social – tornou-se, como vimos, num dos tentáculos do próprio poder político.
Uma instituição que deveria desempenhar também uma importante função de contrapoder nas sociedades modernas é a Igreja Católica (veja-se as intervenções do Papa Francisco). Infelizmente, porém, em Portugal, a Igreja remeteu-se a um silêncio cúmplice. São muitos os milhões de euros que recebe anualmente do estado através das suas instituições de solidariedade, colégios e universidades, entre outras, que a impedem de ser incómoda para o poder político. Este, na ausência de verdadeiros contrapoderes, exerce-se de forma irresponsável, arbitrária e impune.
Por tudo isso e por muito mais que fica por dizer, a pergunta que se impõe é a seguinte: o que é que realmente se comemora no cinquentenário da Revolução do 25 de Abril? Um facto histórico perdido na lonjura de meio século? Um mito? Um paraíso perdido? Uma esperança frustrada?
Pela minha parte, não irei comemorar, este ano, o 25 de Abril, pois, fiel como sou aos seus genuínos ideais, entendo que este é o tempo dos epígonos e dos oportunistas. É o tempo das «bestas triunfantes». É o tempo daqueles que, tendo, há muito, assassinado o verdeiro 25 de Abril, irão agora, nas cerimónias oficiais do seu cinquentenário, proclamar, cinicamente, à volta do seu cadáver, que ele está vivo. Boa sorte a todos.
E, já agora, deixem-me em paz. Sim, como dizia o português mais lúcido do século XX, «Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo… E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho!»
(*) Ex-eurodeputado e antigo Bastonário da Ordem dos Advogados