Dormi pouco, como sempre, acordei cedo, como nunca, bebi a meia-de-leite e fui ler para o escritório. Como habitualmente, os livros acumulavam-se (e continuam a acumular-se), sem ordem, em cima da secretária. Não me recordo se escolhi o livro ao acaso, mas lembro-me bem qual foi, porque nunca mais o recoloquei na estante de onde o tirara: Sobre o lado esquerdo, de Carlos de Oliveira. Permanece, desde então, ao alcance do meu braço (por acaso, ou talvez não, do braço esquerdo).
Reabro-o agora: comprei-o em Maio de 1969, na cidade que então se chamava Lourenço Marques, onde, a contragosto, cumpria o serviço militar, em tempos de uma guerra colonial, violenta e injusta para o povo colonizado, para os jovens mobilizados e para todas as vítimas, ao longo daqueles treze anos a que a Revolução de Abril pôs fim.
Dentro do livro, encontro um papel, escrito à mão, por mim. É uma simples lista de palavras usadas por Carlos de Oliveira: poema (6 vezes), mortos (6 vezes), palavras (5 vezes), noite (5 vezes), vento, vida e mar (4 vezes cada uma).
Releio o poema que dá o título ao livro:
“De vez em quando a insónia vibra com a nitidez dos sinos, dos cristais. E então, das duas uma: partem-se ou não se partem as cordas tensas da sua harpa insuportável.
No segundo caso, o homem que não dorme pensa: ‘o melhor é voltar-me para o lado esquerdo e assim, deslocando todo o peso do sangue sobre a metade mais gasta do meu corpo, esmagar o coração’.”
É durante a leitura – não a de agora, mas a de há 50 anos – que tocam à campainha. Levanto-me e vou ver quem é. No vídeo do intercomunicador vejo o rosto do meu amigo Fonseca Viegas, advogado, que agora já não se encontra entre nós. No 9.º andar em que vivo, espero que o elevador pare e se abra. O Viegas sai, avança para mim, abraça-me e diz, emocionado:
“Abílio, a Revolução começou! Em Lisboa!”
Dado que o meu amigo já várias vezes me anunciara uma Revolução que há muito esperávamos, mas que nunca chegava, não fui efusivo no cumprimento.
– “Ó Viegas, tem a certeza?”
– “Claro que sim! Ligue a rádio!”, disse-me.
Fomos para a sala e sintonizei no Rádio Clube Português. Ouvimos os sons de uma marcha militar. Comecei a pensar que o meu amigo era capaz de ter razão. O primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas, lido por Luís Filipe Costa, tirou-me qualquer dúvida:
“O Movimento das Forças Armadas têm ocupados os estúdios da RTP em Lisboa e no Porto, embora no centro emissor de Monsanto se registe uma interferência provocada por forças da reacção, que, a todo o momento serão dominadas. Logo de seguida, a Radiotelevisão Portuguesa entrará ao serviço do Movimento das Forças Armadas e do País, noticiando os seus comunicados”.
Então sim, a alegria, a esperança, a vontade de gritar Liberdade, a plenos pulmões, após tantos anos de silêncio, censura e repressão, tomou conta de nós. Seguiram-se os telefonemas emocionados para amigos, alguns dos quais não sabiam o que se passava, e a certeza de que, pelas quinze horas, nos encontraríamos todos na Praça da República. Traz outro amigo também!
Quando o Fonseca Viegas saiu, pensei: será agora que, ao contrário do que sucedeu em 1971 – quando a PIDE proibiu e a universidade obedeceu – posso, finalmente, ensinar Literatura Inglesa na minha Faculdade, cumprindo assim a vontade do meu professor e amigo Paulo Quintela?
Em Abril de 1974 soltaram-se as Cantigas do Maio do Zeca. E vieram mais cinco e mais cinco e mais cinco até sermos um só, liberto e de voz clara. Começara, então, a semana irrepetível em que o sonho se tornara realidade.
Hoje, a realidade talvez necessite de um sonho idêntico.
(*)Professor de Literatura Inglesa e de História e Estética do Cinema da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, aposentado.