Coimbra  17 de Abril de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Manuel Antunes

O 25 de Abril e a Saúde

21 de Abril 2024

Antes do 25 de Abril, há meio século atrás, a saúde dos portugueses estava a cargo das famílias, das instituições privadas ou da previdência estatal. Não havia acesso assegurado a todos. As câmaras municipais foram, durante séculos, a par com as Misericórdias e outras instituições privadas, garante da assistência médica e social aos mais desfavorecidos. No entanto, a Constituição de 1933 já previa um Estado corporativo pautado pela solidariedade entre as diferentes classes sociais. Segundo a lei fundamental, “cabia ao Estado um papel supletivo no campo assistencial, nomeadamente na saúde, devendo promover e favorecer as instituições de solidariedade, previdência, cooperação e mutualidade”.

Estes serviços eram então prestados por instituições como as Casas do Povo, Caixas Sindicais de Previdência, Casas dos Pescadores, Misericórdias e, ainda, no sector público, alguns hospitais, dispensários, sanatórios e laboratórios. Só em 1940 foi criado o primeiro departamento do Estado directamente responsável pelos assuntos da saúde, a Subsecretaria de Estado da Assistência Social integrada no Ministério do Interior. Já em 1958, ocorreu a criação do Ministério da Saúde e Assistência.

Em 1971, sob o governo de Marcelo Caetano, foi criado o Ministério da Saúde e introduzida legislação que reconheceu a saúde como um direito para todos e permitiu a criação de centros de saúde públicos. A ideia dos centros de saúde renasceu pelo pensamento dos três principais dirigentes do Ministério, o ministro da Saúde, Baltazar Rebelo de Sousa (pai do nosso Presidente da República), o Secretário de Estado da Saúde, Gonçalves Ferreira, principal ideólogo, e Arnaldo Sampaio, Director-Geral de Saúde. Estes médicos, todos defensores do estado social, lideraram, depois, o processo de implementação a nível nacional.

A criação do SNS

Esta foi, portanto, a ideia percussora da criação do Serviço Nacional de Saúde (SNS), após a Revolução de Abril, como consequência do prescrito na Constituição de 1976, pela Lei n.º 56/79, de 15 de Setembro de 1979, na sequência do chamado Despacho Arnaut, enquanto instrumento do Estado para assegurar o direito à protecção da saúde. “O acesso a cuidados de saúde de qualidade é garantido atempadamente a todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica e social”. O Grupo de Trabalho que elaborou a lei foi coordenado pelo Secretário de Estado da Saúde, Mário Mendes, conhecido Professor da Universidade de Coimbra, e dele fez parte muito activa o Doutor Gonçalves Ferreira, que iniciara a reforma da saúde em 1971. Como o próprio António Arnaut reconheceu, Mário Mendes foi “o obreiro do articulado do SNS”.

Na primeiras duas décadas e meia, o conceito de SNS foi sucessivamente aperfeiçoado por uma corrente legislativa que visava a prossecução do conceito de universalidade e facilidade de acesso, marcada pela criação, entre outros, da carreira de enfermagem (1981), das administrações regionais de cuidados de saúde (ARS) (1982), da carreira médica de Clínica Geral (1982), da Direcção-Geral dos Cuidados de Saúde Primários (1984), da regulamentação das condições de exercício do direito de acesso ao Serviço Nacional de Saúde (1986), da lei de gestão hospitalar (1988), dos CRI (1988), da 1.ª Lei de Bases da Saúde (1990), do regime de taxas moderadoras (1992), do novo estatuto do SNS (1993), do regime de celebração das convenções (1998), do regime dos Sistemas Locais de Saúde (SLS) (199), do novo regime de gestão hospitalar (2002), da Rede de Cuidados de Saúde Primários (2003) e da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados (2006).

Todos estes avanços permitiram ao nosso SNS atingir os melhores indicadores de Saúde do mundo. Desde a sua fundação, a mortalidade infantil reduziu-se mais de dez vezes e a taxa de mortalidade materna mais de quinze, e a esperança de vida à nascença aumentou mais de quinze anos. O SNS foi então por quase todos considerado como ‘a grande conquista de Abril’.

Razões do actual declínio

Penso que foi a partir daí, no início deste século, que se iniciou o actual declínio. Porque o SNS, agora sob crítica generalizada, mais por razões de falta de estratégia e de filosofia política extremista do que por motivos económicos, não soube adaptar-se à evolução da sociedade portuguesa, hoje muito diferente do que era há 50 anos atrás. Um dos aspectos mais visíveis deste extremismo, está na sua incapacidade de conviver e de se coordenar com o crescimento natural e extraordinário dos sectores privado e social da saúde, especialmente o primeiro, sem que tal signifique deixar de ser o pilar principal da prestação de cuidados de saúde aos cidadãos. Sejamos claros, aqueles dois sectores estão aqui para ficar e seria bom que a todos os cidadãos seja permitido o acesso a eles. De forma regulada e em competição saudável, que não em concorrência desorganizada e desleal.

A outra causa mais relevante para o depauperamento do sistema público de saúde está no grau de ineficiência e desperdício, que já descrevi no livro “A Doença da Saúde”, em 2001, essencialmente resultantes de uma gestão pouco profissional e extremamente deficiente a todos os níveis, especialmente a nível intermédio, isto é, nos serviços clínicos e outros. O desaproveitamento do princípio dos Centros de Responsabilidade durante estas últimas duas décadas e meia, e que só agora, quiçá muito tarde, se pretende reabilitar, é bem exemplo de uma oportunidade perdida

É ainda cedo para avaliar os resultados das medidas instituídas nos últimos dois anos pelo governo que cessou funções, incluindo a icónica criação da Direcção Executiva do SNS, cuja estrutura parece estar já a ser posta em causa pelo novo governo que agora iniciou funções. Governo que enfrenta, neste sector, uma tarefa hercúlea. A falta de reformas estruturais, há muito identificadas como essenciais, e a imensidão de medidas avulsas que foram surgindo durante estas duas últimas décadas resultaram numa verdadeira manta de retalhos, que faz com que já não seja suficiente reformar o SNS, é preciso reinventá-lo.

Espero bem que lá cheguemos, mas já não estou certo disso.

(*) Professor Catedrático de Medicina e Cirurgião Cardiotorácico