Coimbra  24 de Março de 2025 | Director: Lino Vinhal

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Marinha das Ondas: um mosaico de culturas emergentes

23 de Março 2024 Jornal Campeão: Marinha das Ondas: um mosaico de culturas emergentes

KSantos é do Nepal e Nazir do Bangladesh, ambos moram na Marinha das Ondas e trabalham na Lusiaves

 

Nos recantos tranquilos da Marinha das Ondas, onde outrora a calmaria era a marca registada, observamos agora um cenário em constante mutação, impulsionado pela chegada de uma população imigrante que tem transformado profundamente a paisagem desta freguesia do concelho da Figueira da Foz.

Antes uma localidade marcada pelo envelhecimento dos seus habitantes, Marinha das Ondas hoje floresce com a energia e diversidade trazidas por uma comunidade multicultural em ascensão. Este influxo populacional, no entanto, não vem sem desafios, como a notável falta de infra-estruturas para responder às necessidades crescentes, incluindo a falta de creches, que reflecte o aumento do número de crianças nascidas na região.

De acordo com estimativas recentes, a população imigrante na Marinha das Ondas duplicou nos últimos anos, representando agora cerca de 20% do total de habitantes, com a maioria proveniente de países asiáticos e actuando em diversos sectores da economia local, onde a mão-de-obra portuguesa escasseia.

Este novo tecido social tem sido saudado pela maioria dos marinhenses, que têm recebido os novos vizinhos de braços abertos, facilitando a integração na comunidade. Mas nem sempre foi assim.

Enquanto os imigrantes têm trazido benefícios tangíveis, como o impulso económico e demográfico, também têm exacerbado desafios preexistentes, como a escassez de habitação. A superlotação das residências alugadas tornou-se uma realidade para muitas famílias, evidenciando a necessidade urgente de intervenção para garantir uma casa digna a todos.

 

Do Bangladesh a Portugal

 

Nazir, um muçulmano oriundo do Bangladesh, licenciado em Farmácia, falou com o Campeão das Províncias, dando a conhecer a sua trajectória de nove anos em Portugal, sendo os últimos sete na comunidade de Marinha das Ondas.

Determinado a conseguir uma vida melhor, Nazir escolheu Portugal como seu destino, deixando para trás a sua terra natal em busca de oportunidades. Foi assim que, após trabalhar em diversos sectores, encontrou na Lusiaves uma porta aberta para um futuro mais promissor.

No entanto, a barreira linguística representou uma dificuldade significativa para Nazir. “Primeiro não foi fácil, porque não falava nada de português”, admitiu. Mas a sua determinação em aprender português e a assistência providenciada pela comunidade foram fundamentais para a adaptação.

A figura de Isabel Cordeiro emergiu como um pilar essencial na integração da comunidade de Nazir. “Quando vim para aqui não conhecia ninguém. Mas um dia, um amigo disse-me que quando precisasse de alguma coisa deveria falar com a Isabel. Ela ajuda sempre”, referiu Nazir, demonstrando a importância do apoio local.

Apesar dos desafios e das diferenças culturais, Nazir encontrou em Portugal não apenas um novo lar, mas também um lugar de acolhimento e amizade. “Aqui tem bom clima e pessoas simpáticas”, expressou, revelando o seu apreço pela hospitalidade portuguesa. Neste momento, a comunidade muçulmana da Marinha das Ondas já tem um lugar de culto.

O Centro Cultural Islâmico de Marinha das Ondas é uma mesquita sunita ali localizada. A mesquita disponibiliza espaço para oração, tanto para homens como para mulheres, com áreas separadas. Este local desempenha um papel importante no colmatar das necessidades religiosas e culturais da comunidade muçulmana local, servindo como um sítio pacífico para os muçulmanos se reunirem, rezarem e encontrarem conforto.

Actualmente, Nazir prepara-se para um novo capítulo na sua vida, ansioso para reunir a sua família em Portugal e continuar a construir o seu futuro neste país que adoptou como seu

 

O projecto que transformou Marinha das Ondas

 

No meio das histórias de vida destes imigrantes, há uma figura que se destaca, não apenas pela sua generosidade, mas pela vontade incansável de ajudar os outros. Isabel Cordeiro, uma residente local, começou um projecto de ensino de português para imigrantes.

“Eu é que comecei”, diz Isabel, modestamente, quando questionada sobre como tudo se iniciou. A sua história é a de muitas pessoas comuns que decidem fazer algo extraordinário quando confrontadas com a necessidade. Tudo começou com um encontro casual num parque, onde Isabel se deparou com uma mãe nepalesa preocupada com o futuro da sua filha. A menina tinha dificuldades em se adaptar à escola e a mãe pensava em enviá-la de volta ao Nepal. Essa conversa mexeu com Isabel, que naquela noite mal conseguiu dormir. A partir desse momento, ela sabia que tinha que fazer algo para ajudar.

O que começou como uma simples ideia rapidamente ganhou forma. Isabel juntou algumas amigas e decidiram começar a ensinar português aos imigrantes, mesmo que fosse apenas aos sábados à tarde. A resposta inicial foi surpreendente: esperavam sete ou oito pessoas, mas acabaram por receber 48.

O sucesso do projecto não passou despercebido. Isabel e as suas amigas lutaram para obter certificação para os seus alunos, insistindo com as autoridades locais até que finalmente conseguiram. A certificação não apenas validou o trabalho árduo dos alunos, mas também abriu portas para um futuro melhor.

Mas o impacto vai além das aulas. Os imigrantes, agora mais confiantes nas suas habilidades linguísticas, começaram a interagir mais com a comunidade local. Passaram a cumprimentar as pessoas na rua, a fazer compras nos mercados locais e a integrar-se de forma mais significativa na vida da vila. Este aumento na interacção trouxe consigo uma mudança de mentalidade na comunidade local, que começou a acolher os imigrantes de braços abertos.

Hoje, Marinha das Ondas é uma comunidade diferente. Antes uma vila quase abandonada, agora floresce com actividade e vitalidade. Os mini mercados, outrora vazios, estão agora cheios de vida, graças à presença dos novos residentes. O impacto vai além do económico, estendendo-se à educação e ao desenvolvimento social da vila.

No entanto, nem tudo foi fácil desde o início. Isabel lembra-se dos primeiros dias, quando as pessoas eram mais fechadas e receosas em relação aos imigrantes. Mas com o tempo e com a persistência dos envolvidos, a situação começou a mudar. Agora, a maioria da população acolhe os imigrantes calorosamente, enquanto os poucos críticos são cada vez mais uma voz isolada.

 

Desafios e esperanças na adaptação a uma nova terra

 

KSantos, um imigrante nepalês, abriu-nos as portas da sua vida, repleta de esperanças e desafios, enquanto se prepara para o nascimento do seu primeiro filho. Num turbilhão de emoções, ele reflecte sobre as vicissitudes que já enfrentaram e as que ainda estão por vir.

“Receber um filho aqui em Portugal é uma dádiva, mas também traz inquietações”, confessa KSantos.

Apesar dos desafios, encontra amparo na comunidade que o acolheu. Antes de se estabelecer na Marinha das Ondas, ele dedicava-se a projectos sociais no Nepal. “Sinto falta de trabalhar nessa área”, confessa com nostalgia.

Com um olhar voltado ao porvir, KSantos almeja construir uma vida sólida para a sua família neste país que agora chama de lar. Contudo, as dificuldades são transversais a todos, a língua é talvez o principal obstáculo, mas não só, porque a falta de habitações disponíveis, a dificuldade no acesso a cuidados de saúde e transportes têm sido verdadeiros pesadelos.

A solidariedade e a luta por um futuro melhor são pilares fundamentais no trajecto de KSantos, mas as dificuldades que enfrenta são inegáveis. Quando questionado sobre o apoio que recebe, ele destaca a importância da comunidade e de figuras como Isabel Cordeiro, cujo apoio tem sido crucial.

“Somos apoiados pela Junta de Freguesia e por pessoas incríveis como a Isabel”, afirma KSantos. “Ela tem sido um verdadeiro pilar de suporte para nós”.

No entanto, quando se trata de organizações como a Cáritas da Leirosa, KSantos expressa decepção. “Pouco tem sido feito pela nossa comunidade”, lamenta. “Sentimos falta de um apoio mais efectivo e abrangente”.

Uma das maiores dificuldades enfrentadas pela comunidade imigrante é a falta de transporte. “Vivemos perto do local de trabalho porque não temos outra opção”, explica. ” A ausência de transporte público torna difícil a deslocação, seja para o trabalho ou para cuidados de saúde.”

A falta de habitação adequada é outro problema enfrentado por KSantos e a sua comunidade. “Há muitas pessoas como nós que lutam para encontrar um lugar para morar. As opções são limitadas e as habitações disponíveis são insuficientes para todos”, diz.

Essas dificuldades são agravadas quando se trata de cuidados de saúde. “Não temos médico de família, o que nos preocupa muito, especialmente agora que estamos prestes a ter o nosso primeiro filho”, confessa KSantos. “A minha esposa não tem acesso aos cuidados de saúde adequados e isso levanta a questão: o nosso filho terá o acompanhamento necessário”?

A incerteza em relação ao futuro da saúde da sua família é uma preocupação constante para KSantos. No entanto, a sua determinação em construir uma vida melhor para a família permanece inabalável.

Isabel Cordeiro e o seu projecto de ensino de português não apenas mudaram vidas, mas também a paisagem social de Marinha das Ondas. Ela é um exemplo inspirador de como um pequeno gesto de bondade pode ter um impacto duradouro numa comunidade inteira.

 

Joana Alvim