Miguel Cardina é o cabeça-de-lista pelo BE no círculo eleitoral de Coimbra, distrito que, assinalou, tem problemas crónicos de mobilidade dos cidadãos, que têm de ser resolvidos, na habitação, de sérias consequências sociais, e na saúde, área em que sustenta ser necessário “salvar o SNS”.
Campeão das Províncias [CP] – Nas legislativas de 2022, o BE apresentou José Miguel Pureza como cabeça-de-lista pelo círculo de Coimbra e Miguel Cardina como segundo candidato, mas não elegeu qualquer deputado. No sufrágio de 10 de Março acredita que será diferente?
Miguel Cardina [MC] – Sim. Em relação às últimas eleições, os dados existentes e a nossa própria percepção apontam para o crescimento do Bloco. É perfeitamente possível recuperarmos a representação parlamentar que já tivemos no passado e é nisso que estamos inteiramente focados.
[CP] – Qual é a sua motivação para se candidatar a deputado?
[MC] -Para poder contribuir para resolver problemas da região e do país. Enquanto militante e dirigente do Bloco já estive em diferentes lutas, em diferentes lugares, em diferentes eleições, e sempre dei o contributo que sabia e podia. Agora, estarei com mais protagonismo, mas a motivação é a mesma. Embora tenha plena consciência de que a responsabilidade é bem maior.
[CP] – O BE admite poder participar num executivo de coligação e num acordo parlamentar da esquerda?
[MC] – O Bloco orgulha-se de ter feito parte da “geringonça”. Infelizmente, em 2019, António Costa assumiu que governaria em minoria, sem qualquer acordo, e, depois de uma maioria absoluta que trouxe instabilidade quando prometeu o contrário, aqui chegámos. Isso hoje é história. Já não se trata de reverter medidas, mas, sim, de dar um novo horizonte de esperança. Para isso é necessário que a campanha seja esclarecedora e que debata os problemas do país: na saúde, na habitação, na educação, nos salários, nas políticas de desenvolvimento económico, social, cultural e científico.
Na verdade, hoje, toda a gente sabe que, depois de 10 de Março, ou haverá um governo com um bloco à Esquerda ou haverá um governo com um bloco à Direita. Diante deste cenário, assumimos a responsabilidade de negociar um acordo de maioria para um programa de governo.
[CP] – Teme que o abstencionismo possa ser elevado, dada a situação política dos últimos meses e o desgaste da imagem da política nacional?
[MC] – Depende de como as forças políticas se apresentarem nesta campanha. O que combate a abstenção é uma campanha em torno de propostas. Uma campanha que responda aos impasses da maioria absoluta e que mostre porque é que a Direita e a Extrema-Direita não são solução. Foi por isso que o Bloco quis apresentar cedo o seu programa e fomos o primeiro partido a fazê-lo. O pior que podia acontecer era chegarmos aos debates sem a clareza dos programas em cima da mesa. Cabe aos partidos debater as respostas que vão determinar o que se vai fazer no dia seguinte, porque é isso que combate o abstencionismo. E, já agora, o ressentimento, o desânimo e o discurso de ódio.
[CP] – Há temas que são pertinentes em Coimbra, como a Linha de Alta Velocidade e a nova Estação. O que tem a dizer quanto a estas matérias?
[MC] – A ferrovia é o meio de transporte do futuro, não há dúvidas quanto a isso. Coimbra, naturalmente, não deve ficar fora da Linha de Alta Velocidade. Agora, independentemente do facto de boa parte das decisões estarem a ser tomadas, é importante que as opções associadas à Alta Velocidade, à escolha exacta do traçado, à localização da estação e à sua envolvente, tenham em conta o necessário respeito pelas populações que possam ser afectadas, pelo ambiente, nomeadamente pelo Choupal, e estimular a participação cidadã nessa discussão pública.
[CP] – E quanto à habitação, que, no fundo, é uma questão transversal?
[MC] – Ao contrário do que diz a Direita, a questão da habitação não se resolve apenas com mais construção. Por outro lado, não se constroem casas de um dia para o outro e o problema é uma urgência hoje. Por outro lado, mesmo que isso fosse a solução – e não é, em Portugal a construção de casas tem acompanhado o crescimento populacional – os preços continuariam incomportáveis. Em 2023, a taxa de juro no crédito à habitação mais que triplicou. A relação entre os preços das rendas e dos empréstimos com os salários é completamente desproporcionada.
Em Coimbra, a renda subiu quase 23% em 2023 e noutras zonas da região, como é o caso da Figueira da Foz e não só, os preços também são altíssimos. Além disso, há dificuldades claras no alojamento estudantil. Em dois anos, o preço médio de um quarto para estudantes aumentou 32% e a oferta de quartos disponíveis para arrendamento diminuiu 40%. Há estudantes que entram no ensino superior e já nem se matriculam, porque não têm condições económicas para o fazer.
Precisamos de soluções urgentes neste campo. Entre outras medidas, é urgente impor tectos às rendas, combater a especulação imobiliária, reforçar o alojamento estudantil, garantir que 25% da nova construção é para habitação acessível e obrigar a Caixa Geral de Depósitos a baixar os juros do crédito à habitação como forma de aliviar as famílias e pressionar os restantes bancos a seguir o mesmo caminho.
[CP] – No Orçamento do Estado 2024, a saúde tem a maior dotação de sempre. Há problemas e as populações são confrontadas com fechos de urgências e adiamentos de intervenções cirúrgicas. Como vê a questão da saúde em Coimbra?
[MC] – O governo diz que a dotação orçamental aumentou, mas falta dizer que uma parte relevante desse financiamento é desviado para alimentar o negócio privado da saúde. Depois, poderíamos falar de casos específicos de Coimbra. A nova maternidade, por exemplo, é uma construção adiada, que tem de avançar rapidamente. E enquanto não for construída devem apetrechar-se devidamente as duas maternidades existentes. Além disso temos o erro feito com a fusão hospitalar, que, na verdade, significou a morte lenta dos Covões. Desmantelaram-se equipas constituídas, reduziram-se camas e aumentou-se a pressão sobre os HUC, com impactos nos tempos de espera nas consultas, nas urgências e nas cirurgias programadas.
No essencial, o ponto passa por aqui: não haverá solução para os problemas na saúde sem salvarmos o SNS. Um passo decisivo consistirá em contratar e melhorar carreiras e remunerações dos seus profissionais. Dar-lhes condições para que fiquem no SNS e não decidam ir para o privado ou para o estrangeiro. Sem esse passo, os problemas das urgências ou os adiamentos das intervenções cirúrgicas não vão ter solução.
Depois, é preciso sermos ambiciosos. Não faz sentido o Estado anualmente gastar milhões, comparticipando exames em laboratórios privados, quando podia utilizar os recursos e a capacidade instalada para realizar exames no público, poupando custos e reduzindo a espera pelos resultados. E também não faz sentido Portugal ser o país da OCDE onde mais pessoas dizem não conseguir satisfazer as suas necessidades de saúde oral. Propomos criar a carreira de médico dentista no SNS e contratar psicólogos e nutricionistas para garantir, a partir dos centros de saúde, acesso a estas áreas.
[CP] – Como pretende actuar o BE quanto às múltiplas questões relacionadas com a interioridade?
[MC] – Há um problema de despovoamento do interior do país que precisa de soluções estruturais e de âmbito nacional. O Bloco defende a criação de um programa de reabertura de serviços públicos nos territórios de baixa densidade, acompanhado de incentivos à fixação de trabalhadores do Estado, que é uma condição indispensável para tornar estes territórios atrativos em termos sociais e económicos.
Importa também dar respostas de mobilidade. Olhemos para o caso do distrito de Coimbra. Não faz sentido que quem vive em Penacova e trabalhe em Coimbra tenha de enfrentar diariamente uma IP3 que, apesar dos remendos, continua um perigo. E também não faz sentido que quem vive em Serpins, Lousã ou Miranda do Corvo esteja pendurado há vinte anos numa solução de mobilidade provisória e que vai ficar como um dos exemplos de desrespeito absoluto dado pelo Poder Central à região.
Por outro lado, os territórios do interior têm de ser vistos para além de uma perspetiva extrativista, como se só fossem recursos e não vivessem aí pessoas; ou uma perspetiva romântica, que os olha como espaço de descanso e de ar puro, mas que, depois, se ataca ambientalmente. Dou um exemplo concreto. Veja-se o que se está a passar com a ameaça de criação de uma exploração a céu aberto de caulinos na zona de Soure. Desconsiderou-se o parecer da Câmara de Soure, não ouviram as populações e iniciou-se um processo que, a seguir em frente, terá um impacto negativo gigantesco no território, na economia e na saúde das populações. Quem ganha com isso? Uma empresa multinacional espanhola, não as populações mais imediatamente afectadas de freguesias de Soure e Condeixa, nem as populações da região.
INVESTIGADOR, POLÍTICO… E MÚSICO
Miguel Cardina tem 46 anos e é investigador do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra. Profissionalmente, tem desenvolvido obra extensa em torno da história do século XX português.
Em 2016 ganhou a prestigiada bolsa do European Research Council (ERC) para coordenar o projecto CROME, em torno da memória da guerra colonial e das lutas de libertação. Numa outra vertente, é baterista do grupo conimbricense “Diabo a Sete”.
No Bloco de Esquerda foi segundo candidato nas eleições legislativas de Janeiro de 2022. Actualmente, para além de fazer parte da coordenadora concelhia e distrital de Coimbra, é membro da Mesa Nacional e da Comissão Política do Bloco de Esquerda.
João Paulino Jornalista do “Campeão” em Lisboa
Entrevista publicada na edição em papel do “Campeão das Províncias” de 25 de Janeiro de 2024