António Costa tinha tudo para figurar de forma imaculada nos anais políticos, saindo pela porta principal, quiçá rumo a outros voos. Merecia-o, na verdade. Contra todas as expectativas colocou uma geringonça a funcionar, promoveu a solidez e sustentabilidade da banca, geriu uma crise pandémica com distinção, equilibrou as contas públicas em pleno cenário de guerras regionais cujas repercussões se fazem sentir, desde logo, em países de pequena expressão, como o nosso.
O povo acreditou nele, António Costa, para primeiro-ministro, tanto quanto em Marcelo Rebelo de Sousa, para Presidente da República. Não se estranha pois que, com tantos créditos reunidos e capacidade de liderança e governação, Costa e os homens por si escolhidos tenham obtido uma das mais solidas maiorias absolutas do nosso parlamentarismo.
Ao contrário do que todos esperávamos esta maioria deu lugar a um autêntico caos. Desde cedo se falava, nos bastidores, que a legislatura não chegaria ao fim. A saída do ministro Pedro Nuno Santos, as questões em torno de Medina, o caso Frederico Pinheiro, a indicação de Galamba, foram autênticas bombas relógio a aguardarem a detonação na hora e momento certo.
No entanto, a intensidade e alcance da deflagração foi muito além do que qualquer um dos governantes ou governados esperaria. Atingiu em cheio a honorabilidade e dignidade do primeiro-ministro, bem como de um conjunto próximo de titulares de pastas e cargos, num processo que a todos nos envergonha designado como “Operação Influencer” e que constitui um primeiro sinal de inquietação que gostaria de expressar: é preciso escrutinar melhor, muito melhor, aqueles que escolhemos para o desempenho de funções políticas – dizendo não ao falso amiguismo, carreirismo e porreirismo que medra em todos os setores políticos, impedindo a meritocracia.
Imprudências de Marcelo
No contexto constitui outro sinal inquietante para a nossa democracia, aquilo que designo por imprudências de Marcelo Rebelo de Sousa. Ao avocar para si a responsabilidade de decidir a solução política para o país, perante o dificil consenso em sede de Conselho de Estado, cometeu uma série de equívocos, ao jeito de interpretações meramente pessoais, com algum grau de perigosidade. Basta para isso escutar com atenção o seu discurso à nação, onde atribuiu a António Costa, mediante filosofia personificadora da vitória, todos os méritos da governação, diminuindo, numa assentada:
– No espectro político: todo o trabalho realizado por comissões políticas e secretariados nacionais, federações, concelhias, secções, simpatizantes e militantes;
– No SNS: a actividade de dirigentes, médicos, enfermeiros, admistrativos e auxiliares;
– Na administração central e governo: o conjunto de titulares de pastas, adjuntos, técnicos e especialistas que cooperaram com o governo;
– Na sociedade: a opção ditada pelo povo mediante voto nas urnas, o qual quis, inequivocamente, uma maioria absoluta em nome da estabilidade.
Quadra festiva animada
Na minha opinião deu jeito a Marcelo não optar pelas soluções mais simples e justas em nome da estabilidade que referiu pretender para o país – numa altura tão sensivel como a que vivemos com a discussão e aprovação do OE. Deixou-se levar pelo pensamento ideológico que pode desaguar não na simpatia que o anima, mas sim no crescimento do radicalismo. Em vez de ser travão, preferiu ser motor da instabilidade, suspendendo o país, colocando-o em autogestão.
A maioria absoluta exigia que o Partido Socialista pudesse indicar novo governo. Ou será que para Marcelo todos os demais deputados são meramente figuras decorativas? Fica a dúvida, que é quase uma certeza.
Desta forma, a quadra festiva que se aproxima afigura-se mais animada na esfera política do que é habitual, por força das estranhas e entranhadas circunstâncias, rodeadas de pujante inquietação. Para além de bolo-rei, broinhas, coscoreis e filhoses, vamos ter em cima da mesa do Natal aos Reis, animadas discussões sobre o futuro do país, sem esquecer o parágrafo da acusação ao nosso primeiro-ministro, que abre um grave precedente na esfera judicial
Ao Partido Socialista compete, nestes termos, uma circunstância especial, a capacidade de colocar no sapatinho o presente que muitos esperam: a glória de se reinventar e escolher um novo líder rodeado de gente séria, para apresentar ao seu eleitorado, parte dele agora muito desconfiado pelo status quo gerado. Uma desconfiança só rebatível pela credíbilidade, honorabilidade e dignidade da candidatura e dos candidatos, uma e outros habilitados a liderarem não só o partido, mas sobretudo, o nosso país que tão massacrado tem sido pela erosão e solubilidade dos poderes e interesses neles alcandorados.
(*) Historiador e investigador