1.Durante a minha vida respirei duas atmosferas. A do autoritarismo de Salazar e a da eufemísticamente chamada democracia, onde germina e prolifera a lalofobia. A lalofobia, ou seja, o medo de falar e de opinar estigmatiza esses dois períodos, e nesse ponto iguala-os. Sem possibilidade de catarse, os cidadãos “levam completamente acordados uma vida de adormecidos”, citando Heráclito. Por medo, ou jeremiam engrunhidos, ou remugem com verrina, ou turibulários bajulam, ou refugiam-se na lura do conformismo, da apatia e do niilismo.
2. Como se receava no tempo da sinistra PIDE, teme-se também actualmente uma cambada de informadores e de zelotas, provavelmente em maior número que nesse passado. À denúncia segue-se a represália. Os cidadãos sentem-se constrangidos e açamados, e calam por medo. Só quem é cego, jacobino ou nefelibata é que não vê.
3. A lalofobia é um sintoma alarmante de absolutismo e de obscurantismo, que conduz à alienação, à servidão, à auto-humilhação, ao conformismo, à despersonalização, à disforia, à agressividade e à violência. Quanto mais frouxo e vazio é o poder político, mais germina o medo de falar. Porque as lideranças inseguras, tarantas, ambíguas, vulgares e inanes, procuram essencialmente a sua sobrevivência com recurso aos instrumentos usuais das oligarquias: propaganda sebenta, mentira e fabulação, cedência a agiotas e grupos de pressão, nepotismo e promiscuidade, incenso do caudilhismo e culto do “Boss”, dialéctica espúria, abstrusa e não raro anedótica, cultura do caciquismo e do cartel, arregimentação de clientelas e de capachos, burocracia e ritualismo demenciais, eliminação da meritocracia, purga dos intelectuais, recusa da ética e cegueira moral.
4. Neste baldio sáfaro, mas corrosivo e pesporrente, com a cumplicidade de um sector podrido da comunicação social, desprovido de probidade profissional e pudor moral, surgem consequências dramáticas: a fractura da sociedade, a perda de confiança, o esvaimento da consciência colectiva, do gregarismo, da sintalidade e da sintropia social, a inércia e a letargia, o desencantamento na participação cívica, e obviamente o silêncio e o medo de falar.
5. Há muitos Velhos do Restelo neste país, que proclamam que assim tem de ser. É o nosso triste fado. Portugal teria definitivamente encalhado, como nação inferior. Não é verdade. O povo de Camões merece muito mais. O espírito viriatino tem de despertar e de se impor energicamente, para que Portugal reencontre o seu desígnio nobre e sagrado. Desde há dezenas de anos que vivemos num embuste permanente. A sociedade não pode ser mansa, tímida e receosa. Nunca diria, como Eça e Vergílio Ferreira, que Portugal é uma “piolheira”. Como sublinha Álvaro Ribeiro “Portugal é uma potência que urge passar a acto”.Tem de ultrapassar a fase crepuscular que social, cultural e moralmente o estigmatiza. São necessárias duas condições. Que a sociedade não se afogue no silêncio, e se manifeste. E que sejam definitivamente enxotadas as elites banais, frouxas, pandas e não raro venais que têm assumido o poder há décadas, a razão primacial deste declínio. Serei convictamente saudosista e sebastianista enquanto isso não suceder. E recuso, como sempre, a lalofobia.
(*) Professor Catedrático jubilado da Faculdade de Medicina de Coimbra