Coimbra  6 de Outubro de 2024 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Mário Frota

Contraposições

5 de Outubro 2023

Manuel de Andrade, numa célebre Oração de Sapiência na abertura do ano académico, em Coimbra, no recuado ano de 1953, interrogava-se acerca das leis: “clareza para quem? Para o leigo ou profano ou para os juristas?” E respondia, sem tibieza nem tergiversações: clareza para os juristas!

Claro que se referia à feitura das leis, algo bem mais simples nos anos em que a “motorização legislativa” ainda não havia tomado conta do ‘Condado’…

Jean Calais-Auloy, o pai-fundador do Direito do Consumo, indagava do mesmo passo, a propósito das regras que preenchem este novel ramo de direito, se a clareza não deveria ornar o direito do quotidiano, que é o direito de uso corrente, o das relações jurídicas do consumo. E propugnava a clareza das leis para os seus destinatários, os consumidores.

O facto é que as leis que se vertem diariamente neste domínio nem são, em geral, claras para os juristas e menos ainda para os cidadãos que delas carecem no seu quotidiano deambular.

E com a profusão de leis “fabricadas” na União Europeia e a péssimas traduções que servem de modelo às transposições para o direito nacional, pior ainda.

E não há um esforço para as simplificar. E para as descodificar.

Basta tomar, como exemplo, uma qualquer lei para se concluir nesse sentido.

Poderemos eleger a lei das comunicações electrónicas, destacando do seu artigo 120, os dois primeiros incisos (n.ºs), e ver-nos-emos em palpos de aranha pelo “embrulhado de termos” e seu cantar arrastado:

“1 — As empresas que oferecem serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, com excepção dos serviços de transmissão utilizados para a prestação de serviços máquina a máquina, devem, previamente à celebração de um contrato, disponibilizar ao consumidor as informações referidas no artigo 4.º do Decreto-Lei n.º 24/2014, de 14 de Fevereiro, e no artigo 8.º da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho, consoante estejam, ou não, em causa contratos celebrados à distância ou fora do estabelecimento comercial.

2 — As empresas que oferecem serviços de comunicações electrónicas acessíveis ao público, com excepção dos serviços de transmissão utilizados para a prestação de serviços máquina a máquina, disponibilizam ainda ao consumidor, no mesmo momento, de forma clara e compreensível, num suporte duradouro ou, quando um suporte duradouro não for exequível, num documento facilmente descarregável disponibilizado pela empresa, as informações constantes do anexo III à presente lei, da qual faz parte integrante, na medida em que se apliquem aos serviços que oferecem.”

Se transcrevêssemos os 12 números do artigo, duplicaríamos o espaço que os jornais nos consentem para publicação, num incrível arrazoado sem fim.

E a ‘lenga-lenga’, quando se fala das empresas, é sempre a mesma…

Se formos à lei da “compra e venda dos bens de consumo”, ao artigo que contempla o prazo de garantia, damo-nos conta dos ‘tiques e arrebiques’ que poderiam ser simplificados:

“1 — O profissional é responsável por qualquer falta de conformidade que se manifeste no prazo de três anos a contar da entrega do bem.

2 – … (um extenso n.º 2 com garantia dos bens com elementos digitais)

3 — Nos contratos de compra e venda de bens móveis usados e por acordo entre as partes, o prazo de três anos previsto no n.º 1 pode ser reduzido a 18 meses, salvo se o bem for anunciado como um bem recondicionado, sendo obrigatória a menção dessa qualidade na respectiva factura, caso em que é aplicável o prazo previsto nos números anteriores.

…”

Seria mais simples assim:

. garantia dos bens novos, recondicionados e usados: 3 anos;

. nos usados, por acordo, admite-se uma redução nunca inferior a 18 meses.

E, depois, de forma sintética, a alusão aos bens com elementos digitais.

No escrito anterior mostrámos que as leis avulsas acerca do “quem cala não consente”, poderiam ser simplificadas se tivesse havido a pretensão de elaborar um código com todos os ss e rr . Cinco domínios, cinco artigos, alguns basto extensos, quando um só chegaria para regular as relações, todas as relações ali abrangidas…

Mas forças ocultas lá entendem que quanto mais extenso, mais prolixo, mais confuso, melhor!

E Viva a República ‘dos’ bananas com esta plêiade de ‘sacanas’, parafraseando El-Rei D. Carlos!

(*) Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO – Portugal