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Semanário no Papel - Diário Online

 

Joana Gil

Dormir sobre este assunto

29 de Setembro 2023

Há uma profunda diferença entre Portugal e Bélgica ao nível do discurso e da cultura relativamente ao sono das crianças. Na Bélgica, a vida da sociedade ajusta-se em função das necessidades familiares (a vida da família nuclear ocupa um espaço muito mais central no ritmo da sociedade belga do que na portuguesa, por chocante que isso possa parecer para quem acha que os povos do Sul é que valorizam a família…). E a vida familiar ajusta-se também em função do sono das crianças. Janta-se cedo, adormece-se cedo e acorda-se cedo.

O sono e o ritmo circadiano acabam por estar muito mais alinhados com a luz solar e, feitas as contas, as crianças dormem bem mais na Bélgica do que em Portugal. Se deixarmos de lado os recém-nascidos (que têm horários muitas vezes caóticos nas primeiras semanas de vida), o normal na Bélgica é um bebé deitar-se algures entre as 19h00 e as 20h00. E este ritmo perdura até perto da idade escolar, pois se é certo que as necessidades de sono vão diminuindo com a idade, também é verdade que a dada altura as sestas vão sendo suprimidas.

Não é demais lembrar que o Ministério da Saúde português aponta para a necessidade de entre 10h a 13h de sono por dia para crianças entre os 3 e os 5 anos, e para 9h a 12h para crianças com 6 a 12 anos. Porém, em Portugal deparo-me com regularidade com eventos para crianças pequenas a horas demasiado tardias: espaços com diversões infantis que só abrem às 20h00 (!), espectáculos para crianças que começam às 20h30 (!!) ou outros que acabam perto da meia-noite (!!!). Claro que uma excepção é uma excepção, mas esta aceitação social de que as crianças estejam taco a taco com adultos até altas horas da noite é, numa palavra, errada.

O sono das crianças deve ser uma prioridade para a sociedade, porque uma criança com bom ritmo de sono tem maior probabilidade de desenvolver hábitos e padrões de sono saudáveis ao longo da vida, e há correlação entre bom sono e bons resultados escolares e desportivos, assim como há relação inversa entre bom sono e obesidade ou doenças cardíacas.

A privação de sono aumenta a conflitualidade e os acidentes de trabalho, e dormir bem tem um papel tão importante para o nosso bem-estar físico como uma boa alimentação ou o exercício físico. Haverá sempre os que afirmam que as suas crianças dormem pouco porque “não adormecem”, “não têm necessidade”, “não gostam de dormir”, “são mesmo assim”, “precisam pouco”, como que anunciando uma espécie de excepcionalidade do seu caso concreto. Infelizmente, estas excepções parecem estar a tornar-se cada vez mais a norma.

Um estudo que acompanhou 131 crianças em idade pré-escolar e escolar e que foi publicado na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar em 2015 revela que mais de metade das crianças seguidas no estudo dormem menos do que o recomendado, e indica as 21h30 como a hora mediana de ir para a cama. Este ritmo seria considerado escandaloso na Bélgica. Não que os belgas adultos não tenham problemas de sono: o consumo de soporíferos tem vindo a aumentar e o número de pessoas que dorme um número de horas insuficiente também. Mas, ainda assim, na Bélgica há a percepção de que o sono das crianças é para respeitar.

Durmamos sobre este assunto, pois. Cedo, de preferência.