“Os meus olhos são uns olhos, / E é com esses olhos uns / que eu vejo no mundo escolhos / onde outros, com outros olhos, / não veem escolhos nenhuns”, escreveu o Gedeão um dia. E bem, como costumava, já que é (também) dos olhares que o entendimento se forma, desde o fio de realidade banal ao mais emaranhado novelo. Quem vê por olhares alheios corre sempre o risco do engano.
Quando cheguei a Moscovo, em Setembro de 1982, aos 20 anos de idade, desconhecia completamente a língua russa. Recordo agora o ruído de nhês e lhês em que, a pouco e pouco, fui distinguindo palavras, depois significados, mais tarde um código de comunicação com a gente dali. Era o meu tempo da URSS, num território que juntava em torno daquele falar jovens de um pedaço de mundo que ia da Europa Central às costas do Extremo Oriente, das montanhas do Cáucaso aos desertos gelados do ártico. Os meus primeiros interlocutores daquela língua em descoberta foram os meus companheiros de residência universitária: Serguei, um russo de Gorky, e Alhosha, um ucraniano de Donetsk, cidadãos soviéticos os dois.
Nestes dias, ao desembarcar em Moscovo regressei a casa – às ruas que conheço, ao frescor que reconheci, à língua que já é minha também – por ter dito que sim ao convite de uma instituição russa para testemunhar as eleições que a Federação Russa promoveu nos territórios das margens do Don. Apesar do barulho que por cá se levantou, fiz aquilo que devia. Fui ao encontro das pessoas do Donbass, aquelas que não participam nas cimeiras das potências mundiais, não figuram nos painéis televisivos, não têm cotação em nenhuma bolsa de valores. Fui falar com elas à marginal da Mariupol ensolarada, na beira do Mar de Azov, encontrá-las nas praças da Donetsk todos os dias bombardeada. Fui saber como estavam aqueles que a televisão filmou cozinhando nas fogueiras acesas na rua, observar as crianças da Novoazovsk a caminho da escola. Fui ver os estaleiros das cidades em reconstrução, os lugares como a Azovstal onde, um dia, derrotados, desfilaram os soldados do Batalhão Azov exibindo, na pele tatuada, divisas do III Reich.
O voto e as pessoas
Levaram-me às assembleias de voto e eu fui. Olhei a parte formal do acto, as assembleias de voto, os painéis de informação, as cabines, as urnas. Mas fui, sobretudo, aonde não me levaram (nem me impediram de ir) – à conversa com a senhora que me disse desejar que o seu voto contasse para eleger a paz; com a jovem que quer ser médica, por ter sentido falta de correspondente saber nos dias de doença nas caves do prédio; da velhota descansada por poder voltar a falar a língua que trouxe do berço, já sem culpa pelo crime de ser quem é; com a avó que se orgulhou do sistema que, num abrigo da cidade, as mulheres inventaram, no Inverno gelado, para manter as crianças aquecidas; com a delegada comunista, que a Maidan de 2014 proibiu de o ser, cumprindo um dever que ainda há pouco era delito. Encontrei poucos homens por ali.
As agências noticiosas internacionais quiseram-se ausentes. Mas é pena porque, pelos vistos, ali houve notícia. Por um pudor que não consigo aceitar, abstiveram-se de perguntar, de sentir, de perceber, de noticiar. Desacompanharam o mundo nos dias em que a História pode ter virado uma página nas vidas da gente do Donbass. E deixaram, por isso, aos como eu, o esforço da procura da verdade a que temos direito, e o espaço do testemunho em que a verdade mora.
E ainda o exclusivo da emoção. Aleksandr, um dos poucos homens que encontrámos, foi ferido em combate em Mariupol. Ainda com a batalha acesa ocupou-se do abastecimento à população faminta, impedida pelas balas dos snipers dos “Azov” de sair dos abrigos. Numa das rondas de distribuição, constatou que a comida que levava não chegava para a tanta gente daquela cave. Foi apanhado a chorar de desgosto por uma menina de nove anos, que o consolou: “não chores, capitão. Eu já comi antes de ontem”. E contou do menino de seis anos que, à vista do pão que lhe levaram, exclamou: “mãe, é pão! Posso, pelo menos, tocar-lhe?”.
Dir-me-ão de “do outro lado” também há relatos pungentes. E eu direi que um povo que viveu unido durante séculos não tem “lados” senão os que lhe foram impostos pelo golpe da Maidan, de 2014, preparado e comandado por um “ocidente alargado” que acendeu e alimenta o fogo em que a Ucrânia se vai consumindo. Num discurso proferido no início do conflito, Poroshenko – o oligarca presidente da Ucrânia, anterior a Zelensky – foi bem claro: “nós teremos trabalho e eles (os do Donbass) não; teremos reforma e eles não; as nossas crianças irão à escola e as deles ficarão nas caves. Porque eles não sabem fazer nada, e é por isso que vamos ganhar esta guerra”.
Foram estes, os condenados às caves, que, nestes dias, me falaram de esperança. E de paz. Porque os horrores da desesperança e da guerra conhecem-nos eles bem.
(*) Professor do Conservatório de Música de Coimbra e membro da Assembleia Municipal de Coimbra do PCP eleito pela CDU