Há quem entenda, com fundamentos de tomo, que o financiamento por privados do acesso à Justiça é, no actual quadro constitucional, contrário aos seus princípios e regras. Como é patentemente o caso, entre outros, de Gomes Canotilho, Jónatas Machado e Eduardo Malheiros.
Outros entendem que a Constituição da República não obsta a que as acções colectivas sejam financiadas por terceiros. Que por essa via granjeiam meios que as compensações arbitradas pelos tribunais são susceptíveis de propiciar, de harmonia com os acordos celebrados entre os financiadores e os pleiteantes-demandantes (isto é, os que deduzem acções reparatórias contra quem lesa interesses colectivos, nomeadamente dos consumidores). No quadro da autonomia privada com suporte constitucional. Como é o caso, entre outros, de Lebre de Freitas, Carlos Blanco de Moraes e Paula Costa e Silva.
O facto é que a Directiva das Acções Colectivas de 25 de Novembro de 2020 que Portugal deveria ter transposto até 25 de Dezembro de 2022 (e até ao momento ainda o não fez) prevê um sem número de regras cautelares que se adoptarão nos Estados-membros em que tal seja admissível, como patamar mínimo.
Portugal não diz expressamente que admite tal financiamento, mas cede tacitamente ao prever, na proposta de lei pendente no Parlamento, um conjunto de regras, de molde a atenuar os efeitos perniciosos que de um tal financiamento possam advir, mormente pelos tais fundos-abutres contra os quais pugna vigorosamente a PROPÚBLICA do combativo Agostinho Pereira de Miranda.
E que regras são essas?
No caso de celebração de acordo de financiamento por terceiros para instauração de uma acção colectiva, o demandante habilita o tribunal com cópia do acordo, oferecendo-lhe ainda uma síntese financeira de que emergem as fontes de financiamento em apoio da acção em causa. É lícita, porém, a ocultação de informações necessárias a garantir a igualdade entre pleiteantes.
O acordo de financiamento assegurará a independência do demandante e proverá à ausência de eventuais conflitos de interesses.
A independência do demandante face ao terceiro financiador revelar-se-á se for exclusivamente responsável por decisões como as de intentar a acção colectiva, dela desistir ou transaccionar mediante recíprocas concessões, norteadas pela intransigente defesa dos interesses em presença.
O financiador não pode impor ou impedir o demandante de instaurar, desistir ou transigir a (ou da) acção, sendo nulas quaisquer cláusulas em contrário.
O acordo de financiamento em que o demandante exerça os poderes de representação, previstos na Lei da Acção Popular, não pode prever uma remuneração do financiador que vá para além de um valor justo e proporcional, avaliado à luz das características e factores de risco da acção colectiva e do preço de mercado de um tal financiamento.
São inadmissíveis as acções intentadas por demandante que haja celebrado um acordo de financiamento se, ao menos, um dos demandados for concorrente do financiador ou entidade da qual depender.
Se ocorrer uma violação de tais regras, o tribunal convidará o demandante a, num dado prazo, recusar ou proceder a alterações ao financiamento como forma de garantir a observância das regras enunciadas.
Se as alterações se não processarem no tempo próprio, o tribunal privará o demandante, no caso, da legitimidade processual.
Recusada a legitimidade activa do demandante, o facto em si não afectará os direitos dos titulares dos interesses na acção co-envolvidos.
Ponto é saber se esta admissibilidade, sem mais, não suscitará de banda de quem detém legitimidade para o fazer uma acção de declaração de inconstitucionalidade a deduzir perante o T.C.
(*) Presidente emérito da apDC – DIREITO DO CONSUMO – Portugal