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Entrevista: Poeta João Rasteiro vê o mundo a sofrer de Alzheimer

30 de Julho 2023 Jornal Campeão: Entrevista: Poeta João Rasteiro vê o mundo a sofrer de Alzheimer

João Rasteiro foi de Coimbra até aos Açores receber o Prémio Literário Natália Correia pela obra “Sardoal”, poesia da vivência da infância no espaço da sua aldeia, o Ameal. O “Campeão” quis conhecer as mensagens e inquietações do escritor, com uma obra que já vai em mais de 20 anos de labuta.

Campeão das Províncias [CP]: Reuniu, em livro, com o título OFÍCIO, 20 anos da sua obra. O título relaciona-se com o seu próprio ofício, como poeta?

[JR): Lembro-me, sempre, das palavras de um grande escritor português, hoje quase já esquecido, talvez devido aos seus anticorpos políticos e, também, como pessoa, que não eram muito favoráveis. Falo do escritor e do homem Vasco Graça Moura, que se afirmou excêntrico, que dizia dar de barato – para não deixar as pessoas muito tristes – que naquilo que escrevia poderia, eventualmente, haver 1% de inspiração, mas que 99% era, sempre, transpiração. Portanto, tudo o que eu escrevo é, na verdade, um ofício, ou seja, é o trabalhar, o escrever, o reescrever, o ler, fundamentalmente ler. Eu sou, principalmente, um leitor.

[CP]: A poesia é alguma profissão de fé sua ou resulta da sua própria vida?

[JR]: A poesia, curiosamente, começou por ser talvez uma brincadeira, uma imitação. Eu, quando publiquei o meu primeiro livro – como disse, eu sou sobretudo um leitor – e deixe-me, rapidamente, contextualizar. Sou de uma aldeia próxima de Coimbra, Ameal do Campo. Aliás, este livro, premiado com o Prémio Literário Natália Correia, é um livro sobre a infância nessa aldeia, ou pelo menos, a memória da memória dessa infância nessa terra, no início da década de 70 e 80, hoje tão distante na memória que, quase parece uma ficção. Mas nessa aldeia, quando eu entrei para a escola primária, aos seis anos, eu e os meus colegas, praticamente todos, inscrevemo-nos naquilo que era algo quase mágico e que acontecia uma vez por mês: uma carrinha da Gulbenkian com livros que visitava a aldeia. Aos 15 anos tinha lido grande parte dos clássicos russos e franceses, alguns americanos, portugueses. Curiosamente, aos 16 anos, foi a primeira vez que um livro me encostou à parede. Foi o ULISSES, de Joyce. Tive de colocar o livro de lado e só uma década depois voltei ao livro. Nessa altura as minhas leituras eram sobretudo, ou praticamente, ficção e não poesia. Posso-lhe dizer: um escritor que praticamente ninguém lê hoje em Portugal, Ferreira de Castro, perdi a conta às vezes em que me embrenhei na “floresta mágica”, o seu romance icónico “A Selva”.

[CP]: Como surgiram os seus primeiros escritos?

[JR]: Os meus primeiros escritos, os que eu comecei a tentar redigir, eram pequenos contos com uma carga de mistério, policial, etc. Eram, naturalmente escritos que, hoje, desapareceram, porque nada têm a ver com a minha obra, a de agora. Eram, claro, muito insipientes. Bendito vento que os levou…

[CP]: E como entrou no mundo da poesia?

[JR]: Na casa dos 20 anos comecei a trabalhar. Eu terminei o 12.º ano com 18 anos, mas sabia de antemão que não ia para a Universidade, porque os meus pais não tinham posses para isso e consegui entrar para o Município de Coimbra, à beira de fazer 23 anos. Nessa altura comecei a interessar-me mais por alguns poetas, como Fernando Pessoa, Mário de Sá-Carneiro, Sophia, Jorge Sena, Torga, etc. E os primeiros escritos, também poéticos, que fiz, numa brincadeira de desafio, para dizer que, também, era capaz, surgiram por aí. Quando estou perto de chegar aos 30 anos alguém me alerta que na Faculdade de Letras se tinha iniciado um curso livre chamado “Oficina de Poesia”, concebido e dirigido pela Professora Graça Capinha. Eu fui lá e fiquei. Ainda bem, porque ela me incentivou a retomar o sonho que já se estava a desfazer, que era conseguir um curso universitário. Aí se abriu o caminho. Publiquei o meu primeiro livro em 2020, “A Respiração das Vértebras”, pela editora Sagesse, do poeta e amigo Jorge Fragoso. Está lá, nesse primeiro livro, a poesia das palavras e os ecos do silêncio.

[CP]: Seguindo o seu caminho, “A Rose is a rose e coetera” é uma obra que marcou o seu percurso. Está lá o seu mundo e os que conhece?

[JR]: É uma obra que será sempre, provavelmente, a mais pessoal que alguma vez escreverei. O título desse livro é uma derivação de um verso de Gertrude Stein, “A Rose is a Rose”. É um livro em que a personagem principal sou eu, a minha mãe e uma terceira entidade que se chama Alzheimer. A minha mãe faleceu com Alzheimer. Nos últimos tempos de vida, já no lar, ainda tinha curtíssimas conversas com alguma lógica. Mas ela conseguia, ao mesmo tempo, tratar-me por filho, por pai e pelo senhor doutor. É algo que me marca, ainda, profundamente. Teve, inclusive, uma adaptação e encenação teatral. Portanto, será sempre o meu livro mais pessoal.

[CP]: Uma vez que fala no Alzheimer, nessa sua obra está lá o silêncio, um silêncio falante?

[JR]: Um silêncio falante ou muitas vezes, solicitando, aflitivamente, o falar e não conseguir. Porque há uma barreira absolutamente marcante, inultrapassável. Nós temos a pessoa à frente, mas não conseguimos dialogar. Repare que o nosso grande poeta, Luís Vaz de Camões, quando falamos dele é uma “coisa” já etérea na nossa cabeça. Há os textos, há a obra dele, colossal e magnífica, mas, mais nada – na verdade, o que importa mais do que tudo, é o texto, a obra. É o esquecimento que nos espera. Uma das coisas que me aflige é perder a memória, perder-me de mim. E, a perda memória, porque para além da doença de Alzheimer de que estamos a falar, acho que, em sentido metafórico, o Mundo, em geral, sofre de Alzheimer. O Mundo está a cultivar o Alzheimer, ou seja, estamos a desperdiçar toda a memória cultural e histórica, com as nossas acções ou, por vezes, pelas nossas inacções.

[CP]: Mudando um pouco o rumo. Coimbra marca-o como Cidade do Conhecimento e da Cultura?

[JR]: Realmente é uma pergunta muito difícil de responder de forma ligeira. Porquê? Porque, por um lado, Coimbra marcou-me para o bem e para o mal, em todos os aspectos. Vim estudar para Coimbra, para a antiga Escola Silva Gaio e, a partir daí, todo o meu trajecto foi na cidade. Acabei por fazer o 12.º ano em Coimbra e, quase imediatamente, fui trabalhar para o Município, onde estou até hoje. Aqui trabalho e vivo desde sempre. Coimbra marcou-me, completamente. Agora, Coimbra é um espaço que, nas últimas décadas, se tornou complexo, nomeadamente a nível cultural. Não propriamente no sentido da vivência, mas na dimensão de um escritor, de um artista que a vive. Coimbra é uma cidade muito madrasta, porque é muito contraditória.

[CP]: É preciso agitá-la?

[JR]: Há décadas que é preciso agitá-la. Considero que, neste momento, e estamos numa fase em que, sinceramente, há muita coisa a acontecer em Coimbra, principalmente com dezenas de colectividades (muitas delas com altas dificuldades de meios de toda a ordem). Ora, há 20 ou há 30 anos que falamos desta questão e, continuam as entidades e as colectividades a estar isoladas umas das outras. Por muito que dêem a entender que estão já a trabalhar em parceria, acho que continuam divorciadas.

[CP]: Falta um Plano Integrado?

[JR]: Falta. Mas falta mais do que isso, porque acho que um Plano não seria relativamente muito difícil de traçar. Falta, sobretudo, vontade de mudar, de pensar Coimbra. Coimbra como um todo e não como espaço de “capelinhas”. Coimbra precisa de uma parceria global para que as iniciativas que estão a ser realizadas tenham a visibilidade que merecem e possam ser potenciadas.

[CP]: Faltam vozes à cultura, à poesia, à escrita, que se façam ouvir?

[JR]: Faltam vozes, ou melhor, muitos dos artistas e dos escritores são completamente ignorados. A forma de a sua voz não ser escutada é muitas vezes ignorá-la. A cultura, a arte e a escrita não têm de ter na sua essência, forçosamente, de forma concertada e directa, uma intervenção reivindicativa no espaço público, mesmo se por si só já sejam sempre uma acto político.

[CP]: SARDOAL foi o livro premiado recentemente com o Prémio literário Natália Correia. Que obfra é esta?

[JR]: SARDOAL era o local da aldeia do Ameal onde os meus pais tinham casa. O Ameal, aqui perto de Coimbra, é a aldeia que me viu nascer e crescer. É a minha raiz materna, o ventre materno… o Sardoal é esse espaço da aldeia, onde vivi, cresci, brinquei e caminhei e, por fim, me edifiquei. Sim, “No indizível quinhão, no retalho / do vazio que nos coube, / falemos da palavra como quem murmura / a pedra inteira, a válvula pura / do fole do Sardoal, / o breve instante da sibilação do mundo / ao exercitar uma rebelião primordial”.

Entrevista de António Barreiros

Publicada na edição em papel do “Campeão” de quinta-feira, 27 de Julho de 2023