O mundo das artes sempre fascinou Beatriz Villar que, desde cedo, se dedicou ao teatro e, posteriormente, à música. Explorou diversos estilos musicais, no entanto, foi em 2019 que se aventurou num novo caminho. O grupo “Na Cor do Avesso” deu-lhe as certezas que precisava para abraçar o Fado de Coimbra, um género onde ainda impera a presença masculina. Em declarações ao “Campeão das Províncias”, Beatriz Villar mostra-se orgulhosa do seu trajecto e do facto de ser a única mulher a dedicar-se exclusivamente ao Fado Coimbra.
Campeão das Províncias [CP]: A Beatriz diz “canto porque sou emoção, canto porque sou canção”. Em que momento da sua vida sentiu o chamamento da música?
Beatriz Villar [BV]: Comecei a fazer teatro aos 5 anos e, portanto, desde essa altura que as artes, de uma forma geral, estão na minha vida. No entanto, só por volta dos 14/15 anos é que percebi que a música era a minha maior e melhor forma de expressão. Eu costumo dizer que não tenho jeito com palavras. Falar, para mim, é sempre complicado, porque fico nervosa. A cantar sinto que já não tenho esse problema: consigo dizer aquilo que eu quero e o mundo torna-se muito mais fácil.
[CP]: O Fado foi sempre um género musical com o qual se identificou?
[BV]: Não. Eu sempre ouvi muito Fado, no entanto, nunca, por livre vontade, ousei cantar Fado nem de Coimbra nem de Lisboa. Costumo dizer que não foi eu que escolhi o Fado. O Fado é que me escolheu a mim. Todas as oportunidades profissionais que me foram surgindo ao longo dos anos traziam sempre esse estilo musical, porque as pessoas acham que a minha voz se encaixa bem. Contudo, comecei por cantar rock, depois passei pelo pop, pelo jazz e nunca tive essa intenção de cantar Fado. Talvez por achar que é um estilo muito exigente e muito português. Como eu não gosto muito da exposição à crítica, talvez por receio, nunca fiz essa abordagem por vontade própria.
[CP]: Nesse caso, como se dá o encontro com o Fado de Coimbra?
[BV]: Este encontro vai dizer-nos tudo ao contrário do que acabei de referir (risos). Claro que estaria sempre exposta à crítica com o Fado de Coimbra. Primeiro, por ser uma mulher. Depois, por começar tão jovem e fora da Academia. Em 2019, integrei o grupo “Na Cor do Avesso”, no qual era vocalista, e foi nessa altura que comecei a cantar Fado de Coimbra já com nomes como Manuel Portugal, António José Moreira, Ricardo Dias e Pedro Nuno Lopes. Portanto, acabei por tomar este passo de forma leviana. Não pensei muito nas críticas.
[CP]: Hoje em dia, tem sido difícil lidar com essas críticas?
[BV]: Curiosamente, já a cantar a solo, eu confesso que nunca recebi grandes críticas. Foi aí que percebi que talvez a mentalidade e o mundo estejam a mudar e já não seja sequer uma questão a mulher no Fado de Coimbra. Sei que ainda há muitas pessoas que não são totalmente a favor, mas julgo que já não é a maioria. Já recebi muitas críticas à forma de me vestir, porque não envergo a capa e a batina. Isso chateia mais as pessoas do que propriamente aquilo que estou a cantar e a forma como estou a fazê-lo.
[CP]: Quando começou a cantar Fado de Coimbra, sentiu algum tipo de dificuldade por este ser um meio onde prevalece a presença masculina?
[BV]: Por parte do público e do meio académico, eu não senti pressão nenhuma. A minha grande dificuldade ao abordar este estilo foi adaptar-me às músicas. Todas elas estão construídas para homens e eu tive de estudar imenso e ouvir muito. A linguagem do Fado de Coimbra é muito própria e tive de adaptar, juntamente com os meus músicos, os tons. Penso que todo esse processo fez com que tudo isto fizesse ainda mais sentido.
[CP]: O que é que mais a encanta no Fado de Coimbra?
[BV]: A lírica. Sem dúvida. Talvez por ter começado, desde cedo, no teatro, eu sempre liguei muito à parte da interpretação e àquilo que as canções nos dizem. Para mim, os Fados não são simplesmente canções. São mensagens que temos de transmitir a alguém. Nesse sentido, não gosto nada de cantar coisas com as quais não me identifico.
[CP]: Essa mensagem que o Fado transmite chega um pouco a todo o mundo. Isto acentua a responsabilidade que a Beatriz sente ao cantar?
[BV]: Eu acho que, todos nós, artistas, quando cantamos alguma coisa que não é nossa temos uma responsabilidade acrescida. Estamos a tentar dar o nosso melhor para passar uma mensagem que é de outra pessoa e que já foi passada de outra forma. Para isso, tem de haver muito respeito. Penso que mais do que uma responsabilidade é um desafio, e eu adoro desafios.
[CP]: Falando em desafios, a Beatriz actuou no Pátio das Escolas, em Coimbra. Apesar de não ter sido a única voz feminina a cantar foi a única mulher exclusivamente dedicada ao Fado de Coimbra. O que é que isto significa para si?
[BV]: Ainda hoje, não caibo em mim de tanta felicidade. Isso demonstrou uma grande aprovação por parte do próprio meio onde estou inserida. Foi mágico estar lá com tanta gente e com aquela moldura lindíssima. Por vezes, é difícil ter o público connosco e, a partir do momento em que entrei no palco, senti que o público estava comigo. Isso deu-me muita força. Ser a única mulher que se dedica exclusivamente a este estilo musical é uma grande responsabilidade, mas eu acho que correu muito bem.
[CP]: Sente que pode estar a abrir portas para que outras mulheres lhe sigam o exemplo?
[BV]: Eu espero que sim. Tenho muito essa vontade. Nunca fiz isto por uma causa singular. Nunca me quis destacar sozinha. Talvez seja preciso haver, nesta geração, alguém que, como em gerações anteriores, dê este primeiro passo.
[CP]: Acredita que o Fado de Coimbra passa por uma maior representatividade feminina, nomeadamente, a cantar numa Serenata Monumental?
[BV]: Sim, eu acho que isso irá acontecer mais tarde ou mais cedo. É um processo natural. Acredito que é preciso profissionalizar o estilo. Penso que o Fado de Coimbra ainda é um estilo musical muito ligado à Academia (nada contra isso), mas acho que há mais um lugar para ele: quando saímos da Academia e nos profissionalizamos nisso. Falta sermos fadistas de Coimbra e não sermos outra coisa qualquer e cantarmos Fado de Coimbra nos tempos livres.
[CP]: Estamos a caminhar para que isso mude?
[BV]: Sim. Acho que isso depende muito do interesse dos jovens em serem músicos. Portugal não é o país mais fácil para essa indústria, mas também acredito que não é o país mais difícil.
[CP]: Recentemente, a Beatriz esteve nomeada para os Prémios Play com o álbum “Viragem”. Esta nomeação é a prova de que está no caminho certo?
[BV]: Eu quero acreditar que sim. Essa nomeação foi totalmente surpresa para mim. Confesso que tive de ler o email 5 vezes para acreditar que aquilo estava mesmo correcto (risos). Quando percebi que, de facto, estava a acontecer foi uma explosão de sentimentos. É sentir que, por Coimbra, consegui. Dei voz à cidade num panorama nacional. No meio de 400 álbuns de Fado, pela primeira vez, o Fado de Coimbra estar nomeado é uma grande conquista não só para mim, mas para a localidade. Sinto que isso não foi muito valorizado pela cidade e confesso que fiquei um bocadinho triste. Contudo, a vida segue. A nomeação é a prova de que o trabalho está bem feito e acho que estou no bom caminho.
[CP]: Que projectos futuros tem planeados a Beatriz Villar?
[BV]: Eu já estou a preparar um novo álbum de canções originais apenas. Neste momento, faz-me mais sentido falar sobre as minhas emoções na plenitude. Contar a minha história. Acho que o próximo trabalho vai fugir um bocadinho do Fado tradicional, trazendo outras sonoridades. No entanto, vai ter sempre a raíz do Fado de Coimbra. No fundo, o meu crescimento musical aconteceu por causa de Coimbra. Eu estarei sempre grata e será sempre uma fonte de inspiração.
Entrevista de Cátia Barbosa (Jornalista do “Campeão” no Porto)
Publicada ne edição impressa do “Campeão” de quinta-feira, 6 de Julho de 2023