António Marinho e Pinto é um advogado e político conhecido pelas suas posições controversas e pelo seu discurso arrojado. Nasceu em Amarante, Vila Chã do Marão, a 10 de Setembro de 1950. Aos 20 anos, Marinho e Pinto foi preso pela PIDE, enquanto estudante na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, por ações de contestação à ditadura. Iniciou a sua carreira como jornalista, exercendo funções de coordenação em agências noticiosas na região e fundou e dirigiu um jornal académico em 1985. Foi uma figura activa na luta contra a ditadura e, após o 25 de Abril de 1974, foi professor do ensino secundário, ensino politécnico e nas universidades de Coimbra e de Aveiro. Foi também bastonário da Ordem dos Advogados e em 2014, foi eleito deputado ao Parlamento Europeu. Em 2015 fundou o Partido Democrático Republicano (PDR), sendo eleito seu primeiro presidente, cargo que desempenhou até 2019, altura em que decidiu afastar-se da vida política ativa, alegando ter perdido as ilusões sobre a possibilidade de mudar o país.
Campeão das Províncias [CP]: Por onde anda?
António Marinho e Pinto [AMP]: Por aí! Citando esse grande pensador da nossa contemporaneidade, o Dr. Santana Lopes, ando por aí. Durante a semana, estou em Coimbra praticamente o tempo todo. E aos fins-de-semana, vou até à minha terra de origem, Amarante.
[CP]: Aqui estudou e de cá nunca mais saiu…
[AMP]: Quando me licenciei, ainda hesitei em sair para trabalhar noutras cidades onde havia até mais possibilidade de ganhar dinheiro, exercendo advocacia, do que aqui. A advocacia em Coimbra era muito concorrida, havia muitos advogados para a dimensão da comarca e, nessa altura, havia bons advogados. Não quero dizer que hoje não haja, sempre houve bons advogados em Coimbra. Alguns advogados de Coimbra eram até melhores do que os de Lisboa, mas os de Lisboa organizavam-se empresarialmente em grandes escritórios. Em Coimbra, tínhamos dos melhores advogados, dos melhores mestres de Direito, mas exerciam em prática isolada, competindo uns com os outros em vez de se unirem. Eu disse várias vezes, que se os advogados de Coimbra se organizassem e cooperassem entre si na criação de um grande escritório este teria grande destaque na advocacia portuguesa e até europeia. Portanto, vivi essa época de hesitação quando me formei. Havia, nesse tempo, uma certa magia, um certo fascínio em Coimbra. Vim para Coimbra, onde tinha amigos, na altura do meu sétimo ano que corresponde hoje ao 11.º ano (o 12º ano foi acrescentado para impedir a avalanche de entradas na universidade logo após o 25 de Abril).
[CP]: É nessa altura que veio morar para Coimbra?
[AMP]: Vim em 1970, dois ou três anos antes da entrada em vigor da reforma no ensino superior do Ministro da Educação, Veiga Simão. Mas em 1969 na altura da crise académica estive aqui embora ainda fosse aluno do liceu. Havia três lugares aqui em Coimbra que eram perigosos para o regime. A Praça da República, o Largo da Sé Velha e os Gerais. Era aí que começavam as coisas importantes. Eram também os locais que os agentes da PIDE mais frequentavam. Os agentes da polícia política, eram conhecidos. Eles eram funcionários do Estado, pagos para defender a ditadura. Mas havia algo pior do que eles. Piores do que os próprios polícias eram os informadores, os bufos. Aqueles que entravam na nossa casa, jantavam connosco, como se fossem amigos, e no dia seguinte apresentavam um relatório à polícia. Isso era repugnante. Eles eram os maiores escroques, e esse é um dos aspectos mais repelentes das ditaduras. São os bufos, aqueles que se aproximam de pessoas, abraçam-nas, sentam-se à sua mesa e depois informam a polícia sobre as conversas que mantiveram. Após o 25 de Abril, descobriu-se que havia muitos mais do que na altura se suspeitava.
[CP]: Na Faculdade de Direito conheceu grandes referências?
[AMP]: Tive o privilégio de ter como professores nomes sagrados na área do direito e da acção cívica e política. Eram pessoas de esquerda, como Orlando de Carvalho e Teixeira Ribeiro, grandes figuras como Ferrer Correia, mas também muitos outros. Por exemplo, Eduardo Correia que foi talvez o maior mestre de Direito Criminal do século XX. Mas também devo dizer, por uma questão de justiça, que tenho uma grande admiração por uma pessoa que, aliás, me prejudicou bastante, pois não me permitiu fazer um exame ao qual eu tinha direito. Estou a falar do Professor Afonso Queiró. Grande parte do brilho e da dimensão científica da Faculdade de Direito de Coimbra deve-se a ele, pois escolhia as pessoas pelo seu mérito e não pela sua orientação política. Professores como Gomes Canotilho, Vital Moreira, Avelãs Nunes e Aníbal de Almeida, por exemplo, que eram reconhecidamente de esquerda, só foram contratados pela Faculdade de Direito devido a Afonso Queiró. Ele chegou a ir a Lisboa falar com Salazar para tirar Orlando de Carvalho da prisão no início dos anos 60. Orlando Carvalho era uma figura com fortes convicções de esquerda, enquanto Afonso Queiró era assumidamente salazarista. No entanto, isso não o impediu de querer os melhores na Faculdade que dirigia, independentemente de serem de direita ou de esquerda. E isso é o que caracteriza uma Universidade. Hoje em dia, porém, a Universidade de Coimbra está a passar por momentos difíceis. O actual Reitor parece um catavento mediático a acolher o que está em voga nos meios de comunicação social. Ele apareceu a proibir a carne de vaca nas cantinas e mais recentemente, a expulsar um professor da universidade, sem o ouvir, algo que nem mesmo a ditadura de Salazar fazia tão sumariamente.
[CP]: Continua hoje com a mesma força, revolta e convicções?
[AMP]: Sim. Os grandes ideais da minha juventude continuam actuais. Naquele tempo, estávamos em luta contra a ditadura. A juventude universitária estava cheia de ideais e ilusões. O mundo fervilhava. Mandela estava na prisão, rotulado de terrorista. Salvador Allende era eleito no Chile e logo depois morto no golpe militar de Pinochet; Guevara tinha sido cobardemente assassinado. A cidade de Hanói, no Vietname, era bombardeada diariamente pelos americanos com duas a três mil toneladas de bombas. A América Latina era palco de golpes de Estado constantes contra governos democráticos que tentavam não seguir a cartilha do Tio Sam. E a juventude universitária sentia que estava num dos lados da trincheira que atravessava o mundo. Hoje, pela minha parte, mantenho todos os ideais da minha juventude pois eles não envelheceram, mas perdi todas as ilusões. A minha principal ilusão foi a de acreditar que, em democracia, a verdade, uma vez conhecida, triunfaria sobre a mentira. Décadas de perseguição e repressão da liberdade de expressão e de informação fizeram-me crer que em democracia bastaria afirmar publicamente a verdade para que as coisas erradas mudassem. Essa foi a maior das minhas ilusões. Eu disse a verdade várias vezes durante nas minhas intervenções públicas, algumas perante as mais altas autoridades do país, e tudo continuou como se nada tivesse sido dito. A opinião pública também não se importava muito com isso. Portanto, dizer ou não dizer a verdade era a mesma coisa. Mentir ou dizer a verdade é, praticamente, a mesma coisa na nossa democracia.
[CP]: Como acha que está a liberdade de informação hoje?
[AMP]: Na verdade, em Portugal, não temos informação. O jornalismo vendeu-se. O jornalismo em Portugal está controlado, principalmente por agências de comunicação pagas pelo poder político e pelo poder económico. O que tem acontecido com a cobertura de um dos eventos mais importante do século XXI, que é a guerra na Ucrânia, é vergonhoso. É desprezível o que os jornalistas portugueses e os meios de comunicação social em Portugal têm feito em relação à cobertura desse conflito. O papel da informação é apresentar os factos com objectividade, explicando-os quanto às suas causas e consequências, e não manipular sistematicamente esses factos para que cheguemos às conclusões que os jornalistas ou os seus mandantes querem que cheguemos. Existe uma hostilidade e uma agressividade sem precedentes contra um país com o qual Portugal nunca teve problemas, por causa de uma guerra com a qual o nosso país não teve a ver. Se me perguntarem sobre a invasão da Ucrânia, sou contra, mas também fui contra a invasão da Jugoslávia, de Granada, do Panamá, do Iraque, da Líbia, do Afeganistão, do Vietname, da Checoslováquia e da Hungria. Os comentários sobre a guerra entre a Rússia e a Ucrânia são feitos por comentadores que odeiam a Rússia e por comentadores que adoram os EUA e a NATO. A moderação é feita por jornalistas que, ao mesmo tempo, odeiam a Rússia e amam os Estados Unidos e a NATO. Precisamos de contraditório nos órgãos de informação, de ouvir o outro lado, de ouvir todas as partes envolvidas. E o mesmo vale para a União Europeia. Este paraíso da democracia e liberdade impede, arbitrariamente, os cidadãos europeus de aceder aos órgãos de informação russos, incluindo um Canal de Televisão, que podiam ser vistos e lidos livremente antes da guerra. A democracia está ferida de morte quando se estabelece a censura, quando se impedem as pessoas de aceder às perspectivas de ambos os lados de um conflito. Isso não é democracia.
[CP]: Na sua opinião a Rússia tem razão?
[AMP]: Não. Sou contra a invasão e acho terrível o que está a acontecer ao povo ucraniano. A Ucrânia está realmente a ser martirizada, é um país e um povo martirizados. Mas há várias causas para isso. Uma delas é a falta de líderes na Ucrânia e na Europa capazes de evitar a guerra resolvendo diplomaticamente os problemas que a ela conduziram. Estamos num impasse. Um país a enfrentar uma das maiores potências militares do mundo, a Rússia, com um arsenal nuclear capaz de destruir o planeta. Esse país, a Ucrânia, é apoiado com dinheiro e armas pelo Ocidente, numa das alianças mais cínicas que eu já vi. Os EUA, a União Europeia e a NATO dão os canhões e a Ucrânia dá a carne! É muito fácil resumir ou atribuir a situação à insanidade de um líder, mas isso é redutor, não esclarece tudo. Dizer que Hitler era louco e foi responsável por tudo pode ser em parte verdadeiro, mas a verdadeira causa do nazismo e da tragédia que ele espalhou pela Europa foi o Tratado de Versalhes e a humilhação imposta à Alemanha pelos vencedores da 1.ª guerra mundial. Estamos a viver um ambiente muito semelhante ao que a Europa viveu antes da Primeira Guerra Mundial. Naquela época, houve uma espécie de união sagrada (segundo uma expressão do presidente francês, R. Poincaré), que era o unanimismo em França, Inglaterra e outros países contra a Alemanha. Era a germanofobia e as pessoas que eram contra a guerra, que alertavam para as consequências da guerra, eram perseguidas, silenciadas e até assassinadas, como aconteceu com o líder do PS francês, Jean Jaurès. Hoje, vivemos em um ambiente semelhante. Qualquer cidadão russo, independentemente das suas opiniões políticas, é perseguido e afastado do seu trabalho simplesmente por ser russo, como aconteceu aqui na Universidade de Coimbra com um professor da Faculdade de Letras que foi saneado por um Reitor da Universidade que não tem cultura democrática, que não tem formação democrática, que não tem perfil democrático e que está à frente de uma universidade pública. Isto é terrível e é por isso que as instituições se degradam cada vez mais, por muito prestígio que tenham tido no passado.
[CP]: Com a sua passagem pelo Parlamento Europeu comprovou a opinião sobre o estado da democracia?
[AMP]: O Parlamento Europeu foi uma grande desilusão para mim. Os eurodeputados não eram verdadeiros representantes do povo, pois nem sequer podiam (nem hoje podem) propor leis ou apresentar projectos legislativos em nome dos seus eleitores. O PE não podia nem pode escolher a sua própria sede, sendo obrigado a andar de malas às costas entre Bruxelas e Estrasburgo. O PE nem sequer pode elaborar a sua agenda legislativa que era e é feita pelos órgãos executivos. Os deputados eram tratados como alunos. Presenciei coisas abomináveis. O presidente do PE expulsou um deputado do plenário por este ter feito, durante a campanha eleitoral no seu país, afirmações de que aquele não gostou. O Parlamento sempre funcionou como uma espécie de corte imperial. Os deputados ganham muito bem, mas têm se submeter à agenda legislativa de um órgão não eleito, a Comissão Europeia, e mesmo assim, a palavra final em matéria legislativa pertence a outro órgão não eleito, o Conselho. Apesar disso, eu acredito numa União Europeia verdadeiramente democrática. A União Europeia trouxe 60 anos de paz e prosperidade entre os seus membros, mas agora parece ter-se tornado um ajuntamento de belicistas. Além disso, a maioria dos Estados Membros recebem da União Europeia mais do que lhe pagam. Apenas alguns países (Alemanha, França, Itália, Áustria, Bélgica, Holanda, Suécia, Dinamarca e Finlândia) são contribuintes líquidos da União, ou seja, pagam mais do que recebem. Os restantes, quase dois terços dos estados membros (entre os quais Portugal e até Espanha) recebem mais da União do que pagam. Isso cria um ambiente insuportável na União e divisões constantes entre os seus membros. A cultura da maioria dos países, como Portugal, é gastar, gastar, pois alguém há-de pagar. Esse alguém é sempre o povo. O nosso país tem estado a fazer despesas que hão de ser pagas com os impostos de pessoas que ainda não nasceram. Os nórdicos têm contas públicas equilibradas e, por isso, têm um estado social muito melhor que o nosso. É por isso que eles têm prosperidade.
[CP]: O rumo do País não é do seu agrado…
[AMP]: E do seu, é? Hoje em dia, não temos opinião pública em Portugal. Temos um povo conformado. Era preciso mais inconformismo. Existem dois tipos de inconformismo ou, se quiser, de revolta: a revolta metafísica que, no fundo, acaba por ser uma revolta contra Deus por permitir tanta injustiça e tantas coisas más no mundo. A sua arma será a blasfémia e acaba por levar ao suicídio. Mas há também a revolta contra a história do nosso tempo, contra o que outros homens estão a fazer. Essa revolta é contra quem nos governa, contra quem está no poder. Hoje, porém, o inconformismo é cada vez mais raro. Conheci pessoas que antes do 25 de Abril pagaram o preço por serem livres: prisões, expulsões da universidade, perseguições e até mesmo a própria vida. Hoje a situação não é melhor, ninguém é preso ou morto por exercer a sua liberdade. No entanto, muitas pessoas têm medo de falar, com medo de perder o pão dos seus filhos, de perder o emprego, a carreira profissional, de não poder fazer um doutoramento. De uma maneira ou de outra, os homens livres pagam sempre um preço pela liberdade. Antes do 25 de Abril, fazíamos a nossa voz ser ouvida, mesmo que não fosse pelos órgãos de informação. Mas hoje o que prevalece é a mentira e o silêncio. Vivemos tempos de silêncios – de silêncios espúrios, de silêncios cobardes, de silêncios traiçoeiros.
[CP]: Passou a sua vida a protestar e a manifestar insatisfação com variadíssimas situações, acha que um dia vai ter de prestar contas ao Criador?
[AMP]: Eu acredito que Ele não o irá fazer porque estaria a negar-se a si próprio. No fundo, Ele é o principal responsável por permitir tudo aquilo que eu contesto. Eu tenho, sobre Deus, uma posição muito próxima da de Teixeira de Pascoaes. “Deus vive, Deus existe. Não na sua obra humana, errada e triste, mas num remoto vulto de lembrança e de esperança”, dizia o grande poeta de Amarante. Para quem acredita, Deus é isso mesmo, esperança apenas. Eu não acreditando, reconheço que alguns daqueles que O invocam neste mundo, neste país, têm dado contribuições positivas para combater muitos dos nossos males sociais, como a pobreza e a miséria. Quando estive na Ordem dos Advogados, em Lisboa, vi muitas vezes, à noite, grupos de pessoas à porta de um supermercado à espera do lixo para apanhar os restos de frutas, de legumes e até de carne e peixe que os supermercados deitavam fora. Essas pessoas que não eram mendigos, tinham uma casa, mas não tinham o que comer. Este é um país que permite que isso tenha acontecido. Eu não gosto muito de apontar pessoas individualmente, prefiro sempre denunciar e criticar situações. Mas há casos em que não podemos esquecer as pessoas. Houve um governo que atribuiu um subsídio de 80 euros por mês para idosos acamados ou com mobilidade reduzida, para ajudá-los a pagar a quem cuidasse deles. Depois, veio outro Governo e até esse subsídio cortou! Isto é quase sanguinário! Tirar 80 euros mensais a idosos pobres e incapacitados. O primeiro-ministro e os ministros desse Governo não têm, nem nunca terão o meu respeito como governantes.
[CP]: Corre o risco de morrer inconformado?
[AMP]: A minha vida não foi determinada por estados de alma. Não se trata de uma revolta metafísica. É história, é a realidade do meu tempo. Em vez de me perguntar isso, pergunte ao povo português por que aceita tantas injustiças, por que aceita tantas mentiras? Por que aceita tanta manipulação da verdade? Por que aceita tanta exploração, tanta hipocrisia e tanto cinismo? Eu não aceito, e como eu, há muitos outros.
Quanto à morte, ela é igual para todos. Quando morrer estarei, de certeza, muito tranquilo com a minha consciência. A morte é muito democrática, toca a todos! Vou morrer tranquilo, sereno, e vou-lhe dizer uma coisa: vou morrer feliz. Porque se não consegui mudar nada, também nunca me submeti a ninguém e nunca me conformei com o que estava errado nem com a mentira.
Lino Vinhal/ Joana Alvim