Por transparência, como é meu apanágio, declaro que sou adepto e associado do Benfica desde pequenino e da Académica de Coimbra desde estudante, clubes com um traço comum, que é a sua influência em fraternidade e mobilização na Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e na diáspora lusa.
Infelizmente, a Académica, por via do OAF, além dos maus resultados desportivos, tem vindo a perder a mística que levava um capital de simpatia em Portugal e para o mundo através do seus licenciados ex-estudantes, e tornava a consensualidade e solidariedade à sua volta uma força ativa, hoje reduzida ou sem significado.
Entre as razões para este facto, estarão com certeza a incapacidade dos seus dirigentes e coroas de glória que pouco dirigem ou pouco contribuem, o alheamento dos estudantes que não encontram motivação para adesão do espírito académico à representatividade e impacto do futebol, e a cidade que não investe num símbolo em decadência, lamentavelmente.
O Benfica é o clube do povo. A alegria, a satisfação e o bem-estar pelas suas façanhas desportivas, a transversalidade das classes que o apoiam, sentem, sofrem e se apaixonam, a multiculturalidade que aproxima e reforça objectivos e pessoas, a universalidade que atravessa continentes e o torna um símbolo de união, a saudade que transporta um pedaço de Portugal que dá resistência para suprir carências afectivas.
Não há nesta evidência, qualquer desconsideração pelos outros clubes desportivos de dimensão notória e seus adeptos, que cimentam a diversidade e o direito de opinião e sentimento, independentemente de comportamentos desviantes da ética e do fair-play e dos donos da bola perpetuados como se uma realeza ou ditadura se tratasse, e que podem atingir qualquer agremiação.
Entre os seus detractores, é referido o Benfica como o clube da ditadura fascista, o clube do regime. Nada mais falso. Eusébio e António Simões fizeram parte da primeira comissão directiva do Sindicato de Jogadores Profissionais de Futebol. Mário Coluna defendia a independência de Moçambique, e Joaquim Santana, outro jogador, defendia a independência de Angola.
O Benfica contestou a proibição de viajar para qualquer país sem autorização do ditador. No Benfica sempre houve eleições democráticas para os seus órgãos sociais, e teve um presidente operário antifascista (Manuel da Conceição Afonso). José Magalhães Godinho, direcctor do jornal O Benfica, vítima da censura, foi opositor de Salazar. O Estádio da Luz, o maior de Portugal, inaugurado em 1954, demorou 17 anos para ter um jogo da selecção nacional. O Benfica foi campeão nacional em 1954 /55, mas foi substituído por outro clube na Taça dos Campeões Europeus
Salazar odiava futebol, e via-o, bem como o fado, como subversivos e lesivos da sua paz social, o que significava repressão. Proibiu hino ao Benfica (titulado “Avante Benfica”, 1929, da autoria de Félix Bermudes), e exigiu a substituição de “vermelhos” por “encarnados”.
Estamos em festa, o campeão voltou. Não se pode mudar o povo, o povo que mais ordena, que transborda a alegria do estádio para as ruas e praças, que faz esquecer desgraças, atravessa gerações e géneros, dissemina-se por locais e vivências, ama cores e sabores, ultrapassa trabalho duro e qualificação.
Sem desculpas de mau pagador nem inventonas, sem complexos de culpa nem recalcamentos, haja glória para os vencedores e honra para os vencidos. Sem menosprezo pelos adversários, sabendo ganhar e sabendo perder.
O Benfica é do povo. Por isso, a maioria do povo está feliz.
(*) Médico