O Guerra gostava de exercer a autoridade. De pequena estatura e de fato escuro, passeava-se pelos corredores frios e largos do Liceu. Achava-se na condição de educador sem que ninguém lhe tivesse passado procuração para tal e corria os alunos à bofetada. Por vezes gostava de agredir em privado e chamava-os ao gabinete onde espancava brutalmente a soco e a pontapé. O regime Salazarista gostava do Guerra. E o Guerra gostava do regime Salazarento.
Nos intervalos das aulas, os alunos encostavam-se amedrontados e cosidos às paredes, porque vinha lá o Guerra. Era sempre um arraial de bofetada. Aqui e ali, o homem ia batendo pelo prazer de agredir. Numa manhã em que eu encostado numa parede com a minha turma o via passear a sua arrogância, o homem passou e, de repente, inflectiu para mim e agrediu-me com duas sonoras bofetadas. Ainda hoje estou para saber o porquê de tão cobarde registo.
Naqueles tempos de má memória, os alunos eram catalogados e diferenciados socialmente. Só os eleitos eram filhos da nação. Os outros, cumpriam a sua triste sina. As profissões dos pais eram determinantes para a obtusa visão de vida do Guerra. Era sectário e impiedoso com os mais fracos e humildes.
Naquela manhã de sol, o Guerra entrou na turma H do referido Liceu e viu dois alunos a conversar de carteira para carteira. Ali logo viu a excelente oportunidade para o seu passatempo favorito – bater. Porém, chegado junto dos dois alunos, inquiriu os rapazes das profissões dos respectivos pais. O primeiro informou o Senhor Reitor do nome do progenitor, que era um conhecido e distinto médico da cidade. Então o Guerra, travestido de educador, repreendeu-o. O outro aluno, disse ao Guerra que o pai era carteiro dos Correios. E admoestação veio logo a seguir sob a forma de dois violentos estalos na cara. Exactamente as mesmas que eu levei, filho de um honrado funcionário público. Deste triste episódio que aqui conto, fui testemunha presencial.
Ao Guerra, mesmo passando bem mais de meio século sobre estes acontecimentos, jamais lhe perdoarei a agressão de que fui vítima. E hoje estou de consciência tranquila. Devia-lhe este texto, mesmo que o Senhor Reitor esteja sentado a bater em Satanás entre as chamas do Purgatório.