Coimbra  5 de Novembro de 2024 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Diniz Freitas

Farpas XXII

19 de Maio 2023

1. Quando visito a soledade e o intermúndio tenebroso de hospícios e de Instituições psiquiátricas; ou testemunho filas intermináveis para consulta no SNS, ou listas de espera criminosas, ou o descalabro e o pesadelo nas urgências, e simultaneamente o florescimento galopante da medicina privada; ou presencio mais uma manifestação legítima dos professores, e leio amargurado que 40% dos alunos do secundário necessitam de apoio social, sob pena de passarem fome; quando leio atónito que a Operação Marquês vai prescrever; ou visiono fugidiamente na TV a morbidez e a distopia confrangedora do Big Brother e de outros programas que roçam a imbecilidade ; ou tomo conhecimento de lucros obscenos da banca e de multinacionais, enquanto que 40% dos cidadãos estão no limiar da pobreza; ou constato que há burlas impunes nomeadamente na venda de alimentos nas superfícies comerciais; quando há milhares de famílias em desespero por não terem capacidade financeira para as despesas correntes do lar; ou assisto ao aumento significativo dos sem-abrigo e de pedintes famintos que vagueiam nas ruas; ou testemunho o pesadelo dos jovens à procura de habitação condigna, ou emigrando em busca de um salário decente, ou no desemprego; quando enxergo ou tomo conhecimento de tudo isto e muito mais, acode à mente instantaneamente a incapacidade, a imperícia, a sofistaria, a irresponsabilidade, a desumanidade e o apodrecimento da nossa governação. Espanta que ainda não tenha ocorrido um sobressalto na consciência nacional que confronte este ruinoso descalabro. Caminhamos para o caos.

2. No passado, apreciei imenso a dupla Senhor Feliz/ Senhor Contente protagonizada por dois magníficos actores. Em tom jocoso e brejeiro, só diziam verdades. A dupla foi recuperada pelos PR/PM. Porque fingem, não falam verdade. Uma farsa. Há dias o Senhor Feliz, depois de sovado pelo Senhor Contente, respondeu numa elocução desdobrada em dois tempos. Na primeira parte, toca a malhar na governação, de forma vigorosa, cáustica e corrosiva, acusando-a de incapacidade, imperícia, irresponsabilidade, puerícia e falha de autoridade. Na segunda parte, quedou-se no letargo habitual. Nada de instabilidade, sublinhou. Essencial é a estabilidade, ainda que na miséria. A partir de agora, acentuou, vai ser mais coactivo e vigilante. Alguém acredita? Que andou a fazer nos últimos sete anos senão levar ao colo o Senhor Contente e o seu gang? No palco da política, fingem que romperam. Uma pantomina. Nos camarins deste circo continuam amigos como dantes. Dois comediantes que se batem sobretudo pela consagração do seu prestígio pessoal. Consumidos pela egolatria, preferem a solércia à probidade, a vulgaridade política à aristocracia do estadista, a intriga palaciana e a picardia, à verdade. No crepúsculo dos seus mandatos ficam na História, ao contrário do que almejam, como dois tremendos equívocos.

(*) Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Medicina de Coimbra