Manuel Antunes é um nome que dispensa qualquer tipo de apresentação. Durante mais de 30 anos, esteve à frente do Centro de Cirurgia Cardiotorácica dos Hospitais da Universidade de Coimbra, onde realizou mais de 35.000 cirurgias de coração aberto, incluindo mais de 12.000 operações valvulares. Este notável cirurgião dedicou toda a sua vida profissional ao Serviço Nacional de Saúde, sempre com a coragem de defender aquilo em que acredita.
Campeão das Províncias [CP]: Ainda se recorda da sua infância?
Manuel Antunes [MA]: Sim. Eu nasci na aldeia de Memória, que fica na zona norte do concelho de Leiria. Tanto eu, como os meus pais e a minha esposa nascemos lá. Consigo recordar alguns episódios de infância com clareza, principalmente a partir dos 4 ou 5 anos, quando fomos para Moçambique, mais concretamente para Maputo, na altura Lourenço Marques, porque os meus pais procuravam melhores condições de vida. Foi lá que passei grande parte da minha vida académica, desde a escola primária até ao curso de medicina, com excepção de um ano em que meu pai precisou vir a Portugal por questões de saúde e fiz a quarta classe na Memória.
[CP]: Sempre foi bom aluno?
[MA]: Sim, fui sempre um bom aluno. Estive no quadro de honra na escola primária e, na maioria das vezes nos outros anos, acabei por ser o melhor aluno da turma. É curioso, tendo em conta as minhas origens humildes e a pouca instrução do meu pai. Quando cheguei a Lourenço Marques, o meu pai ensinou-me a ler e escrever em apenas quatro meses. Durante os quatro primeiros anos, o meu pai acompanhou-me e estimulou-me a estudar, apesar de não ter tido a mesma oportunidade de educação. Isso certamente influenciou-me na minha passagem pelo liceu, onde acabei por optar por estudos superiores, mas nunca me influenciou na escolha de uma carreira específica.
[CP]: Foi fácil seguir os estudos para medicina?
[MA]: A sorte veio ter comigo muitas vezes. É claro que a sorte só não chega. É preciso estar no sítio certo e saber agarrá-la para não fechar a porta. Dois anos antes, quando eu estava no quinto ano do Liceu, formaram-se os estudos gerais universitários de Moçambique. Houve dois cursos antes do meu, e se não tivesse havido, teria sido muito difícil para o meu pai colocar-me numa instituição no continente. Acho que tive sorte em ficar lá, porque me permitiu seguir aquilo que eu queria. A universidade teve a ambição de não ser apenas outra escola médica de Goa, que dava uns cursos muito básicos. O Professor Veiga Simão entendeu que a Universidade de Lourenço Marques devia ter a mesma qualidade da Universidade da metrópole e de facto, a minha vida quer depois na África do Sul, quer depois aqui em Portugal, mostrou-me que a minha preparação como médico não foi em nada inferior àquilo que os colegas que andavam no curso aqui tinham.
[CP]: Passou a vida a bater recordes.
[MA]: Eu sempre dediquei uma disponibilidade total ao que fazia, sobretudo à minha profissão. Nos primeiros três meses depois de chegar a Coimbra operámos 200 doentes, mais do que alguma vez se tinha operado, e não perdemos nenhum.
Os 12 anos que passei na cirurgia cardíaca e um ano e meio na cirurgia geral em Joanesburgo moldaram a minha forma de trabalhar, era muito rigoroso. Entrei no campo com essa mesma filosofia de que o que é para ser feito, deve ser bem feito. Eu trouxe esse sistema britânico para Coimbra e instituí a ideia de que tínhamos que fazer muitas cirurgias e fazê-las bem. Quando visitei o Hospital da Universidade de Coimbra, vi um serviço destinado à cirurgia cardiotorácica preparado para fazer 250 cirurgias por ano, mas eu disse que tínhamos que operar, nesse período, entre 450 a 500 utentes. Rapidamente começámos a receber doentes de todo o País e a minha filosofia sempre foi que, se tudo estivesse pronto, operaríamos o doente no prazo de uma ou duas semanas, no máximo. Ao fim de 4 ou 5 anos, nós éramos claramente o maior serviço do País e também da Península Ibérica. Eu sempre cumpri o meu compromisso com os doentes e conseguimos preencher sempre as nossas listas de espera. Às vezes até íamos procurar pessoas que sabíamos que precisavam de cirurgia. Esse foi o compromisso até ao meu último dia de trabalho em Julho de 2018.
[CP]: Como é que está a saúde em Portugal?
[MA]: Está mal e à vista de todos! Nos últimos 20 anos nada mudou em relação aos sintomas e sinais da Doença da Saúde que descrevi num livro em 2001. Embora o Serviço Nacional de Saúde tenha sido classificado como o 12.º melhor do mundo pela Organização Mundial de Saúde, essa classificação foi influenciada pela falsa ideia de livre acesso aos cuidados de saúde, o que não é verdade na prática e isso deve-se em muito à falta de reformas e à inércia dos ministros da saúde em relação a este problema. Não há constância nem continuidade nas políticas de saúde, e cada novo ministro tenta fazer algo diferente, em vez de continuar o que já foi iniciado anteriormente. Por exemplo, o actual ministro quer muito voltar a implementar os centros de responsabilidade na área da saúde, mas não há uma linha clara de continuidade e muitas vezes os anúncios são feitos, mas depois não acontece nada na prática.
[CP]: A Cáritas entretanto surgiu na sua vida…
[MA]: Quando saí, estava a pensar que continuava no hospital e por isso não me preparei para o futuro. Quando me disseram que afinal não podia continuar, não tinha nenhuma intenção de ir para o privado. A minha ideia era dedicar-me mais à área científica. Faço parte dos corpos redactoriais de pelo menos uma dúzia de jornais e revistas internacionais da Índia, Egipto, Brasil, Estados Unidos, Inglaterra e Portugal. Eventualmente, gostaria de me dedicar a escrever outro livro. Um ano e meio depois, o Bispo de Coimbra, Dom Virgílio, fez-me um convite para assumir a presidência da direcção da Cáritas. Ele telefonou-me um dia a dizer que precisava de falar comigo e eu pensei que fosse um problema de saúde, mas afinal era para falar sobre a Cáritas Diocesana de Coimbra e que a direcção ia sair. Pensei que me estava a convidar para ser um elemento da direcção, mas quando me disse que era para a presidência, fiquei espantado e pedi tempo para pensar no assunto porque na altura eu já tinha 72 anos e, portanto, não se encaixava nos meus planos. Eu ainda não sabia o que estava para vir, porque eu pensava que seria apenas uma ou duas horas por dia. Eu iria lá, sentar-me numa secretária, assinar alguns papéis, fazer alguns exames e outras coisas assim. Eu não fazia ideia de que estava prestes a envolver-me numa instituição que tem 126 serviços espalhados pelo território da diocese de Coimbra, que inclui todo o distrito de Coimbra e mais nove concelhos de outros quatro distritos. A instituição tem quase 1.000 funcionários – não estou a falar de voluntários, estou a falar de funcionários com vencimento – e um orçamento de cerca de 24 milhões de euros. Acabei por assumir essa responsabilidade por duas razões: primeiro, como católico praticante, eu não podia simplesmente dizer que não ao bispo da diocese e, em segundo lugar, tinha agora a oportunidade de fazer algo que nem contava para o meu currículo, porque já não precisava de formar currículo nem aumentar o portfólio, porque estou a trabalhar agora cerca de 35 horas por semana, pro bono. Estou a fazê-lo com a alegria de colaborar em algo que pode fazer bem aos outros.
[CP]: É uma instituição fundamental à sociedade?
[MA]: Claramente necessária. Nós atendemos 16 mil pessoas por ano, em diversas áreas, porque nós temos 126 serviços que cobrem quase todas as áreas sociais. Tudo o que as IPSS fazem é obrigação do Estado. A Cáritas tem lares de idosos, mas não tem essa obrigação. Ainda assim, nós temos cinco lares, e temos vários outros serviços de acolhimento porque muitas pessoas não teriam outro lugar onde viver, não teriam comida para comer, não teriam roupa para vestir ou viveriam na rua. Todas estas prestações que nós fazemos são comparticipadas pela segurança social, mas o valor não cobre nem metade dos custos. Calculamos que cerca de 40% de receita vem da segurança social, portanto, o Estado tem que fazer muito mais. E com o que aconteceu neste último ano, os nossos custos, a inflação Cáritas, que é o aumento dos custos nas três grandes áreas do nosso orçamento, que são as energias, os combustíveis e a alimentação, e os recursos humanos, foi de quase 20%, e eles aumentaram apenas 4% a contribuição. Nós estamos a prestar um serviço ao cidadão, mas é um serviço que devia ser prestado pelo Estado.
Lino Vinhal/ Joana Alvim