Talvez já pouco interesse desperte a muitos jovens, mas se ninguém recorda o passado como realmente foi, corre o risco de colaborar com narrativas dominantes que o contam à sua maneira.
A manifestação de centenas de estudantes de Coimbra, frente ao Teatro Gil Vicente, na noite de 9 de Maio de 1970, em protesto contra uma peça levada à cena pela ultraminoritária extrema-direita estudantil e figuras gradas da ditadura, é um caso paradigmático de um desses apagões aparentemente inexplicáveis, criados por interesses cruzados, onde, em muitos casos, não estão ausentes o dolo e o sectarismo político.
E, contudo, a manifestação de Maio de 70 (que se integra e dá continuidade à Crise de 69, erradamente considerada como acabada em fins desse ano ou em princípios de 70), foi a única reprimida a tiro com balas reais, deixando às portas da morte o estudante Fernando Seiça, e marcas de impacto (algumas ao nível da cabeça) nos muros e vidros do Convívio da AAC, não merecendo ter o destino que tantos documentos, livros, exposições, filmes ou documentários lhe dão, ignorando-a face a factos menores considerados como mais merecedores de registo (ex: exposição de Dezembro de 2022, “Primaveras estudantis – da crise de 1962 a 1974”).
Nas palavras escritas, pelo então Reitor Prof. Gouveia Monteiro, no livro a que significativamente deu o título “Vinte meses de Inferno”, em que analisa o que se passou durante o seu mandato (1970-71), a actuação da polícia na noite de 9 de Maio de 1970 mereceu a seguinte apreciação em carta enviada ao Ministro da Educação, Veiga Simão:
“…a carga a que assisti, na fase final dos acontecimentos, exorbitou manifestamente o que seria razoável. Em primeiro lugar, foi extemporânea, pois nada se passava que a justificasse; de resto, já anteriormente, por duas vezes, e também sem razão aparente, esteve para ser desencadeada. Depois, não se fez qualquer aviso prévio de dispersão, com a advertência de que, a não ser acatado, motivaria a carga (…) Finalmente a carga assumiu um carácter brutal, incluindo várias baixas. Só por um acaso felicíssimo não resultaram consequências catastróficas, mas ainda assim acabou por ser um estudante gravemente ferido que esteve à beira da morte e ficou irremediavelmente mutilado (…) É com horror que ainda hoje recordo o que se passou e não compreendo como a um acontecimento desta gravidade não se dedicou uma só palavra nas conclusões do processo”.
Em páginas anteriores, Gouveia Monteiro refereria: “A gravidade do acontecimento levou a que tivesse eco na imprensa estrangeira. No Daily Telegraph de 13 de Maio de 1970 foi publicada uma notícia que destacamos:
“The shooting, wich resulted in one seriously wounded student and several injured, as caused resentment among Portugal’s already discontent students.”
Se esse dramático acontecimento, que mereceu a atenção da imprensa internacional pela violência da repressão da ditadura portuguesa, continua omisso no habitual registo histórico das lutas estudantis, o mesmo destino têm manifestações, greves, cargas policiais dentro das faculdades, prisões, tortura e julgamento de dirigentes estudantis acontecidos em 71, 72 e nos anos seguintes.
Como em outros documentos e filmes, também nos livros, “Grandes Planos – Oposição Estudantil à Ditadura”, de Gabriel Lourenço, Jorge Costa e Paulo Pena (2001); “Anos Inquietos – vozes do Movimento Estudantil em Coimbra (1961-1974)”, de Manuela Cruzeiro (2006); “Coimbra, 1969 – A crise académica, o debate de ideias e a prática ontem e hoje” de Celso Cruzeiro (2010); “Abril antes de Abril” de Rui Namorado (2016); “O Processo – os documentos da Crise Académica Coimbra 1969” de Gualberto Freitas (2019); “Peço a palavra – Coimbra 69” de Alberto Martins (2019); “Coimbra 50 anos depois – a divisão nas comemorações e o seu significado político” de Celso Cruzeiro (2019); como na revista Visão História de Abril de 2019, com o título “Estudantes contra o Poder” e um capítulo dedicado aos anos 70, nada disso merece uma palavra, como se a luta que opôs os estudantes de Coimbra ao antigo regime tivesse tido o seu epílogo em 1969, a que se sucedeu, aparentemente, o… nada!…
Tal absurdo conceito, tende a reduzir a existência do Movimento Estudantil apenas ao período de maior domínio da tendência “CR” (então ligada, segundo os seus dirigentes, à “nova esquerda socialista europeia” ou ao chamado “marxismo crítico”), excluindo todas as outras e tudo o que se seguiu.
Durante a apresentação do livro “Vinte meses de inferno”, em 2021, o então Presidente da AAC, aí presente, deixou a promessa de promover um debate sobre esse período escandalosamente varrido da história da luta da Academia.
Os mais interessados, contudo, continuam à espera, e os estudantes actuais continuam a desconhecer esse duro passado.
E um país sem memória dos seus momentos mais dignos é, também, um país que vai ficando sem alma…
IMAGENS: Fotos Secção Fotográfica da AAC – Carlos Valente