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Semanário no Papel - Diário Online

 

Hernâni Caniço

A Igreja couraçada

17 de Março 2023

Deixemo-nos de palavras suaves em profusão na comunicação social perante a prática prolongada de um crime que, perante a Justiça, mereceria prisão preventiva, pela reincidência do acto, o crime ser doloso e a perturbação da ordem pública.

A pedofilia, que se pode traduzir simplesmente, sem concepções ou artefactos jurídicos, por abuso sexual de crianças, é crime mais do que pecado e, como tal, deve ser castigada penalmente, mais do que moral e eticamente.

Ser praticada numa instituição de acolhimento e evangelização, que deveria estar acima de qualquer suspeita, assume especial gravidade, por defraudar as expectativas tutelares de aprendizagem das regras e comportamentos sociais e religiosos, e violar a segurança e confiança nas instituições credoras de tais atributos, que deveriam ser imutáveis.

A agravar o crime, surge a prática do encobrimento por altos dignitários eclesiásticos sobre as práticas criminais assumidas, mas desvalorizadas como se fossem uma perversão de Deus, sem ser um acto do Diabo, materializado na vontade própria dos infractores cuja perturbação e atentado à liberdade individual e ao desenvolvimento humano tem de ter consequências penalizadoras.

Não pode haver complacência perante os criminosos (assim devem ser designados), nem simples perdão que lave a imagem (que deveriam ter ponderado previamente), que sugira inocência quando existe ataque aos direitos humanos, que culmine na Igreja como pessoa de bem quando se provou, naquelas circunstâncias, que age como uma pessoa de mal.

A suspensão de padres abusadores de crianças (pedófilos, dito com clareza), é o mínimo que a Igreja deveria assumir, com humildade, não se rodeando de desculpas e muito menos iludir quem professa a fé e até sonegar com arrogância de entidade acima de qualquer suspeita (designação que se revelou não merecer).

Virgens ofendidas

A contrario sensu, poucas foram as dioceses onde a suspensão de padres violadores foi efectivada, mostrando resquícios de dignidade, que os altos dignitários que afinal são baixos dignitários da Igreja não avocaram, em vergonhosa conferência de imprensa, inventariando lamentos, mostrando-se quais virgens ofendidas, menosprezando a gravidade e a delicadeza do seu estado interior.

A recusa de indemnizações, por iniciativa e vontade própria do clero, mais uma vez, desvaloriza o sofrimento das vítimas que deveriam ser defendidas, desdenha as consequências e transformação do percurso de vida dos abusados, e permite aos algozes ficarem-se pelo plano etéreo de intenções e pensamentos sem expressão.

Tenho respeito e crença por origens católicas e desconsideração e descrença por múltiplos representantes da fé, que afinal transformam o seu mister de bondade e humanismo em aproveitamento e abuso de crianças, per saecula saeculorum.

A Igreja é, ainda, pródiga em fazer campanhas eleitorais, com padres aconselhando os cristãos em manifestações de massas e aconselhamento de voto em determinadas forças políticas que se identificariam com a vontade de Deus (como se lhe tivessem perguntado), desancando em quem não é subserviente e temente aos seus propósitos interesseiros.

É hora da revolta dos católicos, leigos e não leigos, demonstrando o desprezo pelos actos indignos de padres (e outros) abusadores de crianças, manifestando o descontentamento pelas posições defensivas, abstrusas e anacrónicas da parcela da Igreja pecadora, e revelando solidariedade efectiva com as vítimas que não deixaram de o ser.

Concretamente, para o peditório sem projecto definido da Igreja, os católicos já deram. Para o peditório de apoio às vítimas seria o seu contributo concreto, através da Igreja que se faça respeitar, assumir os erros e ter vontade de servir os fragilizados.

(*) Médico e vereador do PS na CMC