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Semanário no Papel - Diário Online

 

António Sérgio Marques

Crónicas “de escárnio e maldizer”: Ecos do passado (I)

5 de Março 2023

Os ecos de um passado sombrio, não muito distante, que mergulhou o Velho Continente na mais sangrenta das guerras, ressoaram esta noite nos tímpanos de milhões de ucranianos, europeus e norte-americanos, com uma nitidez espantosa, grave e sinistra.

Pela boca do homem que tomou em mãos a missão de restaurar o glorioso Império dos Czares e devolver o orgulho perdido ao povo russo, o mundo assistiu a um discurso inflamado e beligerante, ancorado num desbragado revisionismo histórico – de recriminação, pasme-se, das permissivas opções bolcheviques pelas autonomias das nacionalidades do império, aquando da construção da arquitectura politico-administrativa da União Soviética – e em ideias que pareciam trasladadas directamente dos comícios e manifestações de rua da Alemanha dos anos 20 e 30 do século passado.

Com efeito, se nos abstrairmos dos pormenores cénicos e da bandeira que emolduravam a figura solene e grave de um Putin em televisiva pose marcial, se imaginarmos o mesmo discurso proferido em alemão, com maior entusiasmo e expressividade e idêntico, mas mais gráfico, dramatismo, e nos centrarmos na narrativa, na semântica e na ideologia subjacente às palavras, ficamos com a temível e arrepiante impressão de que tudo quanto foi dito poderia ter sido proferido pelo psicopata austríaco que, há quase cem anos, escreveu a bíblia maligna – o Mein Kampf – que condensaria o espírito nacional-socialista e ditaria a acção do Führer que conduziria a Europa ao abismo mais negro em que a humanidade já mergulhou.

Todos os conceitos

Estavam lá todos os conceitos, todos os preconceitos, todos os medos, todos os ódios, todas as glórias passadas, todas as glórias futuras: o saudosismo romântico e atávico, o ultra-nacionalismo étnico-racial, o imperialismo racista do povo eleito, o misticismo e a alma colectiva da nação acima das demais, o pan-eslavismo em vez do pan-germanismo, a configuração ideológica inequivocamente fascista do ‘edifício’ do poder, o inimigo externo omnipresente, a quinta coluna dos ucranianos vendidos ao Ocidente em vez da quinta coluna Judaica da Alemanha do segundo quartel do século passado, o direito a trespassar fronteiras e anexar territórios em defesa das minorias russófonas, argumentos invocado nove décadas antes pelo regime do III Reich relativamente às minorias germanófonas da Europa de Leste, e o espaço vital da nação, um Russlands Lebensraum no lugar do Deutschland Lebensraum, conceito subjacente à elasticidade das fronteiras políticas, moldáveis em função da evolução das Rassenkriege, as eternas guerras raciais pela supremacia territorial que legitimavam uma visão geopolítica onde não havia lugar para a instituição do Direito Internacional.

De acordo com esta doutrina, reciclada de um tempo em que as botas cardadas dos exércitos nazis marcharam sobre a Europa em direcção a todos os pontos cardeais, as únicas fronteiras políticas credoras do respeito da comunidade internacional, que não poderão ser violadas e muito menos transpostas por forças de outro Estado em circunstância alguma, são as que delimitam o território da Federação Russa, tal como o eram as que delimitavam o Grande Reich Alemão. A Grande Rússia, tal como a Grande Alemanha, só pode expandir o seu território, sendo inimaginável qualquer movimento da sua contracção. As raças superiores, os povos sucessivamente ‘eleitos’ pela providência que governa o curso da História, têm destas prorrogativas, privilégios de divina procedência que as “vão da lei [internacional] libertando”.

Clone de Hitler

Temos, pois, em Vladimir Putin, um clone político e ideológico de Herr Adolf Hitler – com o mesmo perfil psico-patológico, a mesma megalomania, as mesmas obsessões, o mesmo medo da Democracia, o mesmo ódio ao mundo, a mesma desumanidade, a mesma malignidade da alma.

O Ocidente deveria, por isso, travá-lo, decidida e definitivamente, da única forma que os tiranos, os sádicos e os homens providenciais compreendem: levantando a voz e a mão contra o agressor fanfarrão e pusilânime, revelando aos súbditos do czar que este é, afinal, um pobre cobarde, que só é forte com os fracos; atingi-lo na face, e não só na carteira, vencendo-o no seu próprio jogo, no mesmo tabuleiro onde se acha mestre, onde está, por isso, mais vulnerável.

Se assim não for, que não subsistam dúvidas: o ‘bully’ crescerá em força e em convicção de impunidade, o seu ego inchará ainda mais, o ‘facto consumado’ jamais deixará de ser a única lei de política externa que conhece, e a reconstituição das fronteiras do império, soviético ou dos czares, é igual, levá-lo-à a ser ainda mais temerário e audacioso.