Miguel Castelo-Branco, médico e neurocientista, da Universidade de Coimbra, onde coordena o Centro de Imagem Biomédica e Investigação Translacional, foi o grande vencedor do Prémio Bial de Medicina Clínica 2022, pela investigação desenvolvida ao longo de 15 anos “Os desafios da Neurodiversidade: um percurso na área da medicina personalizada e de investigação no autismo”.
Campeão das Províncias [CP]: Como é ver reconhecida a dedicação de tantos anos a uma investigação?
Miguel Castelo-Branco [MCB]: É muito gratificante. Eu sempre me interessei pela área das neurociências, sempre me intrigou o mistério de como o cérebro se desenvolve e como é que adquirimos competências, nesta área do neurodesenvolvimento e o destino bateu-me à porta. Trouxe-me uma situação clínica para dentro de casa bastante desafiante, um filho autista. Ter este carácter pessoal torna este prémio mais especial.
[CP]: Como é que se caracteriza o autismo?
[MCB]: O trabalho que candidatei à Bial aborda a neurodiversidade e o autismo caracteriza-se por isso. O que caracteriza esta condição são os problemas de comunicação, socialização e a regulação emocional. Não quer dizer que não tenham interesse na socialização, mas têm uma certa inibição.
Há uma outra característica bastante intrigante, porque não está necessariamente relacionada, que é a tendência para os comportamentos repetitivos. As pessoas com autismo vivem aprisionadas nisto, no medo de sair da rotina e no medo de comunicar. Apesar de terem estas características em comum, reagem e tentam vencer de formas distintas a estas dificuldades.
[CP]: Foi por ter um filho autista que se dedicou a esta investigação?
[MCB]: Em parte sim. Ele foi diagnosticado quase ao mesmo tempo que nós estávamos a iniciar estudos nesta área. Obviamente que o facto de ele ter este diagnostico, acelerou bastante o investimento pessoal nesta investigação.
[CP]: Sendo investigador e pai como consegue lidar com esta situação?
[MCB]: Sendo pai e investigador é difícil separar os papéis, ele ensina-me muitas coisas, é uma aprendizagem para além da investigação.
É claro que observar uma pessoa todos os dias dá-nos um entendimento que provavelmente um investigador não tem, porque há muitos investigadores desta área que têm pouca noção do que é o dia-a-dia dos autistas. Uma coisa é um profissional ver uma pessoa com autismo uma vez por ano, numa consulta que demora meia a uma hora, outra coisa é ter este contacto 24 horas por dia.
Também sou vice-presidente da APPDA Coimbra (Associação para as Perturbações do Desenvolvimento e Autismo) por isso acabo por ter contacto com muitos outros jovens e outros pais. A perspectiva que isto me dá é que há uma grande diversidade de visões sobre o autismo e nenhuma delas é a correcta, todas são válidas.
[CP]: A pessoa autista tem noção de que tem essa perturbação?
[MCB]: Há autistas com grande sucesso empresarial porque acabam por capitalizar a rigidez de hábitos e a capacidade cognitiva que têm, é o chamado autismo altamente funcionante. Todos os autistas sentem as dificuldades, lidam é de forma diferente, na sua neurodiversidade. O diagnóstico muitas vezes é um alívio, para o autismo altamente funcionante, porque percebem finalmente o porquê de para eles ser tão difícil a comunicação e a interacção social e a ansiedade que daí resulta, quando se tem uma consciência aguda de ser diferente.
[CP]: Como é que se chega ao diagnóstico?
[MCB]: O diagnostico segue orientações internacionais, mas não é fácil porque é em parte baseado em questionários e observação tendo por isso algum grau de dificuldade e até subjectividade. Na minha opinião isto justifica porque a prevalência do autismo tem números tão diversos. Por incrível que pareça, há 20 anos a estimativa de prevalência do autismo apontava de um para 1000 e neste momento nalguns países é estimada em quase 2%. Nos Estados Unidos a prevalência é de um para 54, que é um número enorme. Hoje há mais diagnósticos, há mais sensibilização para o autismo. Há muitos casos que antes passavam despercebidos. Um grande desafio é a transição para a vida adulta. Uma das grandes missões das associações de autismo é tentar aumentar a empregabilidade das pessoas com esta perturbação. Um bom exemplo é a Critical Software, com quem estamos em contacto por causa de alguns projectos de investigação, que está a empregar autistas com capacidades na área da informática. Uma das grandes barreiras que um autista na idade adulta encontra é a entrevista de emprego por causa da dificuldade em comunicar. A APPDA Coimbra está num projecto que fomenta as capacidades de a pessoa ser bem-sucedida nestas situações e também de sensibilização aos empregadores, projecto em que a Federação Portuguesa de Autismo, da qual faço parte, também trabalhou. Estas pessoas gostam de trabalhar, é preciso perceber em que nichos podem ser colocadas.
[CP]: Nestes 15 anos de investigação o que é que mais o surpreendeu?
[MCB]: Aquilo que mais me motivou foi descobrir que há ferramentas que podem ser eficazes, não para curar, para reabilitar. Aquilo que mais me surpreendeu foi a capacidade que estas pessoas têm de aprender, se lhes dermos as ferramentas certas.
[CP]: No trabalho de investigação conta com uma equipa, como é que isso funciona?
[MCB]: Nesta investigação conto com o apoio da Faculdade de Medicina, onde sou professor, com o Instituto de Ciências Nucleares Aplicadas à Saúde (ICNAS), que é uma infra-estrutura muito importante na área da imagem médica e não só, e também com o Coimbra Institute for Biomedical Imaging and Translational Research (CIBIT), um instituto que criámos em 2018 e que posso descrever como disruptivo porque centra a investigação e a procura de soluções na pessoa. Outra instituição importante nesta investigação e à qual tenho de agradecer é o Hospital Pediátrico e à professora Guiomar Oliveira por todo o saber clínico que traz a estes projectos. Também agradeço todo o apoio do Serviço de Psiquiatria do CHUC, onde temos jovens psiquiatras muito motivados com estas linhas de investigação. Isto é desafiante, porque é uma equipa muito vasta e multidisciplinar.
[CP]: Os jogos de realidade virtual que vocês criaram revelaram-se um sucesso…
[MCB]: Criámos jogos que permitem aprender a utilizar transportes públicos, outro que ensina a fazer compras num supermercado, os chamados jogos ecológicos. Já tivemos contactos de escolas de Nova York e do Canadá, interessadas em adquirir estes jogos. O desafio é estes jogos saírem da Academia, vamos precisar de encontrar interlocutores empresariais ou associações que permitam disseminar estes jogos e personalizá-los para um programa de intervenção específico para cada utente.
[CP]: O ICNAS é um centro muito importante…
[MCB]: O ICNAS é o representante português da imagem médica numa infra-estrutura europeia que se chama Euro Bioimaging e tem granjeado bastantes projectos europeus à custa desta sinergia.
[CP]: Têm conseguido reter investigadores?
[MCB]: O programa mais importante que existe em Portugal para o emprego científico é da Fundação para a Ciência e Tecnologia, onde a taxa de financiamento é relativamente baixa, entre 5 a 8%. Portanto existe um problema de emprego científico ao qual nós não somos imunes. Existe precariedade e existem várias lacunas estruturais que precisam de ser resolvidas. Eu diria que a Flad e a Bial são as fundações que mais dinheiro investem fora das suas próprias portas para estimular os investigadores. A investigação em Portugal é muito competitiva, mas temos que ter algum cuidado com a visão a longo prazo e as questões estruturais.
[CP]: Qual é o seu próximo desafio?
[MCB]: Um prémio traz sempre outra responsabilidade, continuar a trabalhar para levar estes jogos para o terreno, trazer soluções para a reabilitação e claro, desafios de investigação pura, percebendo como os circuitos cerebrais estão modificados no autismo para poderemos ajudar e encontrar soluções.
[CP]: Uma última mensagem…
[MCB]: Deixo uma mensagem de gratidão a todas as equipas que contribuíram para este trabalho e também de sensibilização: aceitem a neurodiversidade das pessoas com autismo e ajudem-nas a integrarem-se.
Luís Santos/ Joana Alvim