Em pleno séc. XXI, num Portugal supostamente desenvolvido assistimos, quase em directo, a um drama social (mais um), envolvendo o assassinato bárbaro de uma criança, uma inocente de 4 anos de idade, às mãos de gente sem coração, que merecia, caso existisse, a pena de morte.
Como justificar a tortura, física e psicológica, de um ser que partiu por causa de 400 euros (!), num clima de violência, chantagem e bruxaria? Não encontro justificação plausível, a não ser na degradação psicossocial de todos os envolvidos e, obviamente, num falhanço colossal, do papel da mãe, da família, e do estado que confiou na vigilância suave e não na acção imediata.
A partir de agora ficámos todos a saber que, em Portugal, no ano de 2022, se matam crianças por valores irrisórios, e que as crendices ao extremo ainda colhem simpatias fanáticas e actuações criminosas.
Temos de parar para pensar nos vários falhanços, os quais, numa conjugação macabra, conduziram ao desenlace fatal: a família enquanto espaço âncora, a escola no seu papel educativo e formativo, as equipas técnicas mais bem preparadas para agir no terreno.
A Jéssica, como todos sabemos, não é caso único. Acresce a uma lista pesada que se perde na noite dos tempos e, infelizmente, não será a última a ser sacrificada pelo estranho mundo dos adultos. Quantas Jéssicas estão a sofrer neste momento? São muitas as crianças que sofrem maus-tratos, que no silêncio dos lares e não lares, são privadas dos Direitos da Criança, estabelecidos pela Declaração de Genebra de 1924 e, mais tarde pela Declaração dos Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia-Geral da ONU, em 1959.
Este caso fez-me recordar Bissaya-Barreto e a sua Obra de Protecção à Grávida e Defesa da Criança (OPGDC), criada em Coimbra no final dos anos 20 da centúria passada, tendo em vista poupar milhares de inocentes ao infanticídio, doenças e abandono. Tinha o lema, bem conhecido de «Façamos felizes as crianças da nossa terra». Aliás, no Instituto Maternal, o distinto médico e cirurgião afixou aqueles direitos internacionais, que continuam disponíveis para leitura atenta, pois não só estão perfeitamente actuais, como também são violados, continuadamente, por esse mundo fora.
Um século depois, apesar de muitos progressos humanos e materiais, a verdade é que muitas crianças, independentemente do estrato social, continuam a não serem felizes na sua terra e, como se constata, a morrerem quando tinham a vida pela frente. A sociedade está doente, o sistema ineficaz, é preciso rever com cuidada atenção o que falhou e agir no sentido de proteger todos aqueles que não têm voz, particularmente, os que nem consciência têm da sua própria existência.
Urge tomar medidas duras e perenes, como endurecer o quadro penal ou fiscalizar, regularmente, as situações suspeitas. Não basta sinalizar é preciso acompanhar numa lógica de proximidade efectiva. Se há área onde se deve permitir que um estado polícia e autoritário cresça esta é, certamente, uma delas.
Adeus, pequena Jéssica. Peço-te desculpa por não ter sido possível chegar a tempo. Que a tua partida ilógica seja a semente que permitirá roubar à morte os nossos pequenitos.
(*) Historiador e investigador