– Inevitável, vezes sem conta tenho de recuar à minha velha Coimbra. Desta, a convite do Movimento MAIS, para, no próximo sábado, integrar um painel que na Casa da Cultura abordará questões ecológicas. Um tema muito oportuno, num momento em que decorrem mais duas cimeiras mundiais sobre alterações climáticas.
Médico, cidadão e escritor, a minha paixão pela ecologia vem de longe. O meu primeiro romance, O Senhor Comendador, de Abril de 1994, que lançava fortes reservas sobre o crescendo do poder político perante uma sociedade indefesa, também deixou clara a mensagem de preservar o planeta. Trata-se de uma preocupação da juventude, que cedo expressei em Maio de 1971, na revista de cultura Capa e Batina.
À época, focada na evolução das clivagens políticas, e quase em sintonia com a Censura que filtrava os clamores de maio de 68 e das lutas dos jovens americanos, a lusa intelectualidade desprezava as pegadas ecológicas, consideradas conservadoras e até mesmo reacionárias. Um crivo que, no meu “sonho por uma Universidade Nova”, não impediu a publicação daquela que terá sido a primeira resenha de teor científico sobre Poluição Atmosférica, publicada em Portugal. Meio século depois, obrigado a consultar os meus arquivos, foi uma delícia deparar com um extenso texto que, a “fazer doutrina”, quase podia ser datado de ontem.
Vale a pena contar a origem desta minha tenra incursão pela Ecologia, pois abre à evocação de um grande mestre de Coimbra, precocemente desaparecido, o Prof. José Miguel Goulão, da Faculdade de Medicina, que, naqueles tempos obscuros, regia soberbamente a obscura cadeira de Higiene e Medicina Social.
Ainda hoje recordo a sua primeira aula, quando, depois de explanar um programa que obedecia a cânones muito estritos e por demais fastidiosos, lançou um desafio que, para mim, sempre seria irrecusável:
– O programa é vasto e como não há tempo para tratarmos vários temas, deixo em aberto espaço para outros assuntos atuais, que vos possam interessar. Na próxima, verei se alguém quer fazer uma comunicação sobre um qualquer tema, à vossa escolha.
No final da aula seguinte, num anfiteatro à cunha, Miguel Goulão relançou o repto a que só eu respondi, erguendo-me do meu canto. Enquanto lentamente o vi “varrer” a sala, como à procura de mais “heróis”, senti que a minha iniciativa, talvez por ainda inédita na sua curta carreira, lhe causou alguma surpresa.
– E que assunto sugeres abordar? – Perguntou, no final da curta “inspecção”.
– Existem várias lacunas no programa, mas deixo ao critério do Senhor Professor alguns novos temas, entre outros a poluição atmosférica, a eutanásia e a eugenia.
Homem extremamente afável, mas por certo influenciado por preconceitos gerados pelos horrores nazis, e porque não a prever sarilho, dessa vez o Professor encarou-me com algumas reservas:
– Mas tu sabes o que é a eugenia?
– Sim! – Respondi, prontamente. – É a área da Medicina que estuda como prevenir o nascimento de crianças deficientes.
A assistir a um complicado ping-pong, a sala quedou-se em profundo silêncio enquanto o meu interlocutor permanecia de pé, no estrado, como a reflectir sobre uma resposta de todo inesperada. Até se me dirigir com a sensatez e a sabedoria só ao alcance de alguns predestinados:
– Muito bem! Mas entre todos os temas que propuseste, entendo preferível que abordes a poluição atmosférica.
Meses depois, no início de 1971, “adiantado no seu tempo”, mas já a viver numa “Universidade Aberta”, um conceito que Maio/68 introduzira no pensamento coimbrão, o Prof. José Miguel Goulão facultou-me a sua “cátedra” durante uma hora inesquecível. Contudo, a dissertar sobre matérias em que certamente fui pioneiro em Portugal, as ideias expressas foram consideradas “avançadas”, não tendo ele oportunidade de as publicar no âmbito da Faculdade de Medicina, como desejava.
E foi assim que, meses mais tarde, em Maio, o meu texto foi acolhido na revista de cultura Capa e Batina, dirigida então pelo ainda jovem Fernando Ruivo, saudoso Professor de Economia. Ao lado de Torga e Josué de Castro.
Muito cedo José Miguel Goulão nos deixou, razão desta minha homenagem a um mestre inesquecível, porventura o mais actual do seu tempo numa Faculdade de Medicina que, ainda hoje, dá claras mostras de continuar “fechada”.
(*) Médico, cidadão e escritor