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Mário Frota

O que diz Vera “non è vero”

29 de Julho 2020

A propósito de viagens canceladas…

A quem aproveita tanta desinformação?
Em entrevista à Lusa [e à RTP (“Portugal em Directo”)], Vera Jardim, provedor do cliente das agências de viagens, assinala que a maior parte [dos milhares de] queixas [que lhe têm sido dirigidas] não terá solução para já, uma vez que os consumidores vão ter que esperar até ao final do ano [2020] para escolherem se ficam com o “voucher” para fazer nova viagem ou se querem receber o seu dinheiro de volta, conforme decisão governamental.

A emissão de “vouchers” foi, disse Vera Jardim, “a solução encontrada para evitar uma enorme dificuldade no sector das agências de viagens e turismo” e, de acordo com o Provedor do Cliente esta é também uma opção que defende “os interesses dos consumidores”, uma vez que as agências não teriam, a breve prazo, como ressarcir os clientes.”

O provedor (do cliente ou das agências?) não deve ter entendido a lei. Ou então propala inverdades, iludindo e menosprezando os consumidores e afrontando os seus direitos. Nada que se deva esperar de um provedor…

Com o decretamento da pandemia a 11 de Março pela OMS, todos os destinos turísticos (ou não) passaram a ser locais de perigosidade acrescida, estando vedados aos viajantes, fosse qual fosse a origem.

As regras imperativas editadas pelo Parlamento Europeu e em vigor (n.º 2 do artigo 12 da Directiva) e traduzidas na Lei portuguesa (DL 17/2018, de 8 de Março: n.º 4 do artigo 25), prescrevem:

“ … O viajante tem direito a [pôr termo a]o contrato de viagem organizada antes do início da viagem organizada sem pagar qualquer taxa […] caso se verifiquem circunstâncias inevitáveis e excepcionais no local de destino ou na sua proximidade imediata que afectem consideravelmente a realização da viagem organizada ou o transporte dos passageiros para o destino.

Em caso de [extinção] do contrato de viagem organizada…, o viajante tem direito ao reembolso integral dos pagamentos efectuados para a viagem organizada, mas não tem direito a uma indemnização adicional.”

O facto é que a 23 de Abril próximo passado, pelo DL 17/2020, o Governo entendeu afrontar ostensivamente o ordenamento da União Europeia ao decretar:

As viagens organizadas por agências de viagens e turismo, cuja data de realização tenha lugar entre o período de 13 de Março de 2020 a 30 de Setembro de 2020, que não sejam efectuadas ou que sejam canceladas por facto imputável ao surto da pandemia da doença COVID-19, conferem, excepcional e temporariamente, o direito aos viajantes de optar:

Pela emissão de um vale de igual valor ao pagamento efectuado pelo viajante e válido até 31 de Dezembro de 2021; ou

Pelo reagendamento da viagem até 31 de Dezembro de 2021.

. O vale (“voucher”) é emitido à ordem do portador e é transmissível por mera tradição.

Se não for utilizado até 31 de Dezembro de 2021, o viajante tem direito ao reembolso a efectuar no prazo de 14 dias.”

Se, porém, o titular da reserva se achar desempregado o reembolso do preço será imediato [até ao dia 30 de Setembro de 2020, os viajantes que se encontrem em situação de desemprego podem pedir o reembolso da totalidade do valor despendido, a efectuar no prazo de 14 dias: n.º 6 do artigo 3.º do DL 17/2020].

No limite, as viagens neste lapso de tempo só serão eventualmente reembolsadas em 2022 (e não em Dezembro de 2020), num enorme hiato temporal que prejudica gravosamente as famílias.

No mais, se as agências de viagens se entregarem à insolvência ou, pura e simplesmente, não cumprirem as obrigações a seu cargo, rege o n.º 5 do referenciado artigo:

o incumprimento imputável às agências de viagens… permite aos viajantes accionar o Fundo de Garantia de Viagens e Turismo, nos termos previstos no Decreto-Lei n.º 17/2018, de 8 de Março.”

Claro que a União Europeia admite que o consumidor receba um vale, em lugar do reembolso imediato, mas sempre – e só – com o seu assentimento. Não por imposição de uma qualquer lei nacional.

Donde, não se perceber o que diz o provedor… Já que Vera Jardim parece ignorar que a Comissão Europeia instaurou procedimento de infracção contra Portugal por violar a Directiva Viagens Organizadas de 25 de Novembro de 2015, em vigor na ordem jurídica portuguesa. Que manda reembolsar de imediato os consumidores sempre que “circunstâncias inevitáveis e excepcionais” levem ao cancelamento das viagens.

Do mesmo passo, a RTP / Canal 1 que diz que as soluções avançadas pelo Governo “estão em linha com as orientações da União Europeia”, o que é redondamente falso. Não se admitindo que iluda também os milhões de telespectadores que só querem a verdade e não os favores da RTP (paga pelos consumidores e contribuintes) ao Governo e seus apaniguados.

Na ponderação de interesses, ante famílias que sofreram forte rombo com a situação que ocorre e as empresas que sempre terão à sua disposição os programas de financiamento que o Estado põe à sua disposição, não se concebe que hajam de ser os consumidores (as famílias, afinal) a garantir a subsistência das agências de viagens sem quaisquer contrapartidas.

Quando, é facto, a Recomendação de 13 de Maio de 2020 da Comissão Europeia revela quais os programas a que as agências podem recorrer para se manterem no mercado…

Os consumidores têm direito ao reembolso integral, sem mais. E poderão impugnar perante os tribunais as normas editadas em Portugal a 23 de Abril p.º p.º, já que o juiz nacional é também o garante do ordenamento jurídico da União.

Ademais, a despeito de um professor de Lisboa ter opinado que ”enquanto a lei portuguesa não for alterada tem de ser religiosamente cumprida”, uma vez que a directiva não se aplica directamente, é entendimento da Prof.ª Susana Almeida ( e, em uníssono, da apDC, de que é vice-presidente) que a directiva não só se aplica directamente, como ao juiz nacional, como garante da ordem comunitária, cabe apreciar a desconformidade entre a lei nacional e a directiva europeia para afastar o decreto-lei de 23 de Abril da sua aplicação aos casos concretos.

(E por juiz nacional se entende quer o magistrado de carreira que opera nos tribunais judiciais portugueses como o juiz-árbitro em serviço nos tribunais arbitrais de conflitos de consumo (como eventualmente os juízes dos julgados de paz).

apDC – DIREITO DO CONSUMO – Coimbra