Ora vamos lá imaginar Coimbra, cidade dos Estudantes, sem esses mesmos estudantes… Não será muito diferente de um eterno mês de Agosto, em que a cidade se esvazia, ficam alguns habitantes, passam, rapidamente, alguns turistas, e o marasmo se instala. Quem fica, anseia por Setembro, o regresso às aulas, o momento em que ruas e praças tornam a ficar habitadas, há movimento, convivialidade, afinal, aquilo que faz uma cidade.
É sabido que não alimento alguns dos mitos de Coimbra, em particular desde que a praxe e as festas académicas se converteram em exageros com dimensões nocivas, que cumpre combater, mas que não constituem, o foco da minha reflexão. E este foco é a cidade de Coimbra, a sua identidade, e a sua formação de comunidade centrada na Universidade. Se há exageros nas festas de estudantes e nas noites estudantis, o convívio e a diversão são uma parte saudável e necessária da vida da juventude, faz parte da sua formação social e, em muitos casos, é central à troca de ideias e à formação de pensamento, à fruição cultural e desportiva, não só da comunidade estudantil, mas da cidade. É daqui que nasce a Coimbra do pensamento e do activismo resistente.
Coimbra não tem tecido social sem esta população académica. Não terá economia, sem as instituições do ensino superior e tudo o que em torno delas gravita. Deixará de ser a cidade do conhecimento e podemos esquecer a capital da cultura. O mais provável é uma estagnação da qual jamais recuperaríamos.
Imaginar esta situação não é invocar uma distopia longínqua da morte de um lugar. Talvez seja algo exagerada – mas um exagero necessário para compreendermos o absurdo que já se projecta nalgumas cabeças com capacidade de decisão: o Ensino Superior Pós-Covid como dominantemente não presencial. Já li de tudo: a modernização das novas tecnologias (mas não do pensamento crítico), os estudantes-clientes que se pode captar vendendo diplomas à distância, que não há razões para que cursos “de papel e lápis” (quais são eles, senhores?) não possam ser ensinados à distância.
Enquanto Professora na Universidade de Coimbra desde 1993, passei, nos últimos meses, pelo período mais difícil de exercício da minha actividade profissional, tal como os/as meus colegas. Por necessidades sanitárias, que compreendemos, assumimos tarefas que revelaram, sobejamente, a impossibilidade real de fazer formação efectiva através de um ecrã de computador. Não há pedagogia que substitua a presença, mesmo que o ensino à distância – quando bem feito e preparado – possa ser solução cabível em determinadas situações pontuais. Não preciso de referir a surrealidade das provas de doutoramento online ou da avaliação que estamos a fazer, em estilo big brother, sob um regime de controlo autoritário que nunca conhecemos, que revela desconhecimento da própria universidade, e total descaso pelas desiguais condições em que trabalham docentes, funcionários/as e estudantes.
Mas foquemo-nos no pós-Covid. Não sabemos quando virá e as previsões oram indicam numa ora noutra direcção. Porém, há quem tenha certezas: as de que o futuro do Ensino Superior será virtual. Não o digo eu. Diz o reitor da Universidade de Coimbra, numa vertigem de pioneirismo e de “modernização” que o simples bom-senso da sabedoria popular devia servir para refrear: “não colocar o carro à frente dos bois”. Reflictamos a partir da cidade: Que consequências terá para Coimbra a vertigem do virtual, a transformação da Universidade de Coimbra, o mais possível, numa instituição de formação à distância, de investigação focada apenas na encomenda imediata, destruindo, no fundo, a comunidade universitária, com professores, estudantes, actividades de ensino e formação, pesquisa alargada e de ponta, criação e dinamização cultural? Desrespeitando um património de 800 anos, esta visão curtíssima diminui a Universidade: um colectivo que pensa a sociedade, a analisa, e propõe soluções amplas para os fenómenos sociais, regista a sua memória e participa na criação de futuro. Equivale, também, à redução da Universidade a mais uma instituição industrializada de venda de diplomas que, afinal, em linha, podem ser comprados em pacote a partir de qualquer parte do mundo. Significa a destruição da comunidade que dá vida a Coimbra, que a torna viva e cosmopolita, que adensa o seu tecido social, que faz mexer a economia, que, com maior ou menor concretização, constituiu sempre a matriz identitária e o cerne a partir do qual se pensou e pensa o presente e o futuro da cidade: o conhecimento e a cultura. Se eu puder ser professora, estudante ou pesquisadora na UC a partir de qualquer lugar, o que me fará vir a Coimbra, residir aqui? O que acontecerá aos CHUC, afinal hospital universitário, e outro polo empregador e vital para a cidade? O Ministro do Ensino Superior apelou ao regresso às actividades presenciais, aqui mesmo em Coimbra. Há condições para isso. Não se entende, pois, a autocracia reitoral a coberto de um clima de medo.
Imaginemos a cidade dos Estudantes sem Estudantes. O projecto está em curso. É importante que não avance. Mesmo sem mitologias, uma serenata à janela e com 1,5 m de distância social ainda não é o mesmo que uma serenata em livestreaming. E é pela sobrevivência de Coimbra que estaremos, efectivamente, a lutar. A palavra à comunidade universitária, à cidade.
(*) Professora Associada da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, investigadora do Centro de Estudos Sociais, membro da Comissão Coordenadora Concelhia do Bloco de Esquerda/Coimbra