A descoberta de gene responsável pelo dimorfismo sexual em aves é capa da revista “Science”, um artigo publicado por uma equipa internacional, da qual faz parte a Universidade de Coimbra (UC).
Neste estudo é revelado, pela primeira vez, “que mudanças na expressão de um só gene podem originar diferenças dramáticas na coloração entre machos e fêmeas em aves”, nota a UC.
“As mulheres são de Vénus e os homens de Marte? Na verdade, no mundo animal as diferenças morfológicas entre machos e fêmeas não são exclusivas dos seres humanos. Muitas espécies de aves evidenciam grandes diferenças na coloração das suas fêmeas e machos, um fenómeno geralmente denominado por Dicromatismo Sexual”, adianta.
Segundo esta investigação, “na maioria das espécies com dicromatismo sexual, os machos apresentam penas com cores mais exuberantes enquanto que as fêmeas apresentam cores menos vivas. Foi proposto pela comunidade científica que estas diferenças na forma e tamanho entre mulheres e homens, bem como as diferenças na coloração das aves fêmeas e machos têm a mesma explicação, a competição entre machos pela atenção das fêmeas. Mas, embora os machos e as fêmeas possam ser diferentes no seu tamanho, forma e coloração, a maior parte dos seus genomas é igual. Então, como é possível que estas diferenças morfológicas entre sexos ocorram? Pela primeira vez, um novo artigo na reputada Science revela como mudanças na expressão de um só gene podem originar diferenças tão dramáticas na coloração entre machos e fêmeas”.
A descoberta foi feita por uma equipa interdisciplinar e internacional da Universidade do Porto, Universidade de Coimbra, Universidade Washington em St. Louis (USA) e Universidade de Auburn (USA).
Os canários que foram utilizados para este estudo não são os canários amarelos que todos conhecemos, mas sim uma raça peculiar de canários vermelhos, que foram obtidos há várias décadas, quando criadores cruzaram canários com uma espécie similar, mas vermelha, da América do Sul, o Cardinalito da Venezuela. Os seus descendentes passaram a ter no seu genoma um gene obtido a partir dos seus pais da América do Sul, que permitiam-lhes produzir penas vermelhas, uma descoberta que foi feita pela mesma equipa, liderada por Miguel Carneiro, em 2016.
“Mas estes cardinalitos também têm outra característica que os tornam diferentes dos canários, são sexualmente dicromáticos, tendo os machos penas de cores vivas e as fêmeas cores esbatidas. Enquanto que na maioria das novas variedades de canários vermelhos, não há diferenças entre sexos, em uma em particular, essa característica foi seleccionada. Nesta variedade, os canários Mosaico, os genes para o dicromatismo sexual, herdados a partir dos seus ancestrais sul-americanos, foi mantida”, esclarece a UC.
“Os canários Mosaico proporcionaram-nos uma oportunidade única para encontrar os genes responsáveis pelo dimorfismo sexual, porque podemos criar canários nos quais a única diferença entre eles é o facto de terem dicromatismo sexual ou não”, explica Miguel Carneiro, o investigador do CIBIO-InBIO, Centro de Investigação em Biodiversidade e Recursos Genéticos, InBIO Laboratório Associado, da Universidade do Porto que liderou o estudo.
Os investigadores anteciparam que, após tantos anos de cruzamentos seleccionados, o genoma dos canários Mosaico seria muito semelhante ao dos canários amarelos, seus ancestrais, com excepção dos genes responsáveis pelas diferenças na coloração entre machos e fêmeas. Esta hipótese foi provada como estando correcta.
Os cientistas encontraram uma única região divergente no ADN dos canários Mosaico, quando comparado com o ADN de outras variedades de canários. Nesta região está um gene, que codifica uma enzima, a causa mais provável para estas diferenças, a Beta-Caroteno Oxigenase 2 (BCO2).
“É surpreendente que estas diferenças tão drásticas na coloração das penas sejam determinadas por um único gene”, explica Miguel Carneiro.
Mas como esta enzima causa estas diferenças? “Ela degrada os pigmentos vermelhos e amarelos. A diferença entre os machos com cores vivas e as fêmeas com cores esbatidas é resultado da quantidade de pigmentos que são depositados nas penas. Assim, este tipo de gene pode dar origem a machos mais coloridos e fêmeas com menos cor” diz Ricardo Jorge Lopes, um dos primeiros autores do estudo, autor da fotografia da capa, investigador do CIBIO-InBIO e Curador de Aves no Museu de História Natural e da Ciência da Universidade do Porto.
“Mas se tanto os machos como as fêmeas têm no seu genoma o gene que codifica a enzima BCO2, como pode acontecer o dimorfismo sexual? É que não são só diferenças no gene BCO2 que permitem que aconteça o dicromatismo sexual, mas sim onde este gene está “ligado” ou ‘desligado’. Conseguimos demonstrar que a expressão de BCO2 difere entre sexos e é regulada de maneira diferente em diferentes tecidos», explica Pedro Miguel Araújo, outro dos primeiros autores do estudo, investigador do CIBIO-InBIO e do MARE (Centro de Ciências do Mar e do Ambiente) da Faculdade de Ciências e Tecnologia da Universidade de Coimbra (FCTUC).
“BCO2 é um gene já implicado na coloração em outros contextos, mas esta é a primeira vez que foi identificado como sendo importante para o dimorfismo sexual”, diz Małgorzata Gazda, antiga aluna de doutoramento da Universidade do Porto e também primeira autora do estudo. “O BCO2 aparece regularmente ligado a vários sistemas (humanos, outros mamíferos, ratos, lagartos) implicados em várias características, demonstrando assim a sua importância no metabolismo e na coloração”.
Finalmente, para verificar se a descoberta seria limitada aos canários ou se explica a base genética do dicromatismo sexual mais em geral, “os investigadores olharam para os padrões de expressão deste gene em outras espécies da mesma família. Foi bastante excitante quando se verificou que o BCO2 também é expresso diferencialmente nessas outras espécies”.
“Colocar a nossa descoberta dentro de um contexto mais amplo foi a parte mais empolgante do projecto. Os cientistas procuram padrões gerais na natureza e neste caso, este parece ser um mecanismo comum para o dicromatismo sexual em aves”, diz Miguel Carneiro.
Pedro Miguel Araújo