Coimbra  24 de Janeiro de 2025 | Director: Lino Vinhal

Semanário no Papel - Diário Online

 

Jorge F. Seabra

Resgatar o Hospital dos Covões, resgatar a Cidade

12 de Junho 2020

O núcleo hospitalar de Coimbra foi, até há cerca de uma década, formado por dois importantes agrupamentos hospitalares (Hospitais da Universidade de Coimbra e Centro Hospitalar de Coimbra) que incluíam dois hospitais centrais – o Hospital da Universidade de Coimbra (HUC) e o Hospital Geral dos Covões.

Estes dois Centros Hospitalares, que asseguravam, em conjunto, uma capacidade de resposta diversificada e de grande qualidade, chegaram a constituir a base de uma campanha que apregoou Coimbra como “Capital da Saúde”, levada a cabo pelos mesmos que depois lhe foram corroendo a base organizativa e infraestrutural, impedindo o seu desenvolvimento, no quadro do ataque global ao Serviço Nacional de Saúde (SNS).

Essa estratégia – iniciada há muito pelos governos do então chamado “arco do poder” (PS, PSD e CDS) e da troika com o crónico subfinanciamento do SNS, partidarização das administrações e chefias clínicas, transferência massiva de doentes para o sector privado e desestruturação das Carreiras Médicas – aprofundou-se com o encerramento de Serviços e fusões de unidades hospitalares, amputando a capacidade de resposta do serviço público de saúde.

Coimbra foi talvez a cidade que mais sofreu com esse perverso processo concentracionário.

A fusão do Centro Hospitalar de Coimbra com os Hospitais da Universidade de Coimbra, que levou à criação do Centro Hospitalar Universitário de Coimbra (CHUC), não obedeceu a qualquer estudo prévio ou à auscultação dos profissionais e Serviços envolvidos, nem seguiu qualquer lógica de aproveitamento de eventuais sinergismos ou economias de escala, sempre anunciados como justificação, que os anos nunca vieram a confirmar.

O que na realidade aconteceu, foi o assalto hostil da Administração dos HUC ao Centro Hospitalar de Coimbra dando livre rédea a clubismos e compadrios para uma pilhagem que apenas respeitou amigos e “compagnons de route” com ambições de carreira ou de partido, desarticulando equipas com grande experiência e desaproveitando a importante capacidade instalada.

Nesta passagem de furacão, os exemplos de perda são muitos e têm sido denunciados. Se, por um lado, o Hospital dos Covões foi esvaziado de equipamentos e especialidades pelo assalto, os HUC ficaram a abarrotar de médicos e doentes, os primeiros procurando um espaço funcional para desenvolver o seu trabalho, os segundos acotovelando-se em bichas na Urgência ou aguardando em listas de espera insufladas.

Por toda a trajectória de caos, disfarçado por palavras ocas e anúncios pomposos, perpassou uma miríade de cortes cegos, medidas irracionais e burocráticas, com falta de material clínico e de apoio, bloqueios informáticos, não renovação e contínua perda de recursos humanos, desorganização e baixa da capacidade assistencial, aumento da conflitualidade e degradação das condições laborais.

O tempo passou, a administração dos CHUC mudou e está para mudar, mas o caminho para a asneira e o obcecado centralismo manteve-se ou até se acentuou com o projecto de superpovoar a já sobrelotada área dos HUC com o projecto da construção na sua “cerca” da nova Maternidade, acrescentando mais um edifício, mais gente, mais automóveis e mais de tudo ao já obeso e atafulhado grã-ducado hospitalar.

Mas a Covid 19 irrompeu pelo país sem pedir licença a ninguém, exigindo uma resposta que só o SNS, como serviço público, universal e (quase) gratuito podia dar, invertendo por momentos a lógica de gestão “empresarial” das unidades públicas, cada vez mais afastada das reais necessidades da população.

E foi com o coronavírus à perna que os responsáveis dos CHUC “redescobriram” a capacidade edificada e técnico-científica do Hospital dos Covões, até aí votado ao desprezo (nem dava para servir de apoio à nova maternidade…), decidindo que seria ele a aguentar o embate da perigosa pandemia, tratando os casos mais complexos que exigissem técnicas e terapêuticas multidisciplinares e sofisticadas.

Talvez a escolha dos Covões para “Covidário”- deixando os HUC “limpo” para tratar outras patologias – não tenha sido tão inocente ou benigna como pode parecer, mas a suspeita corre o risco de ser considerada especulativa, tanto mais que a solução não foi inteiramente despida de racionalidade, embora os circuitos entre os dois hospitais nem sempre tenham funcionado bem pela distopia criada pela famigerada “fusão”.

Mas o que seguramente não estaria nos planos da actual Administração dos CHUC, (já em tempo de despedida), era que a qualidade da resposta que o Hospital dos Covões deu aos problemas da Covid 19 viesse a realçar a sua importância como unidade hospitalar diferenciada, reforçando a argumentação dos muitos que, como nós, sempre defenderam que a sua descaraterização como Hospital Central, despindo-o de especialidades e valências que aí existiam, constituía uma injustificada perda e um incompreensível desperdício.

Felizmente, após um período em que muitos lamentavam o erro mas encaravam a desastrosa “fusão” como um facto consumado, foi crescendo a onda de protestos e a exigência da reversão do processo, com revitalização dos Covões e edificação da nova Maternidade na sua cercania evitando os constrangimentos que irá sofrer e causar se se localizar no espaço confinado dos HUC.

Com a instabilidade crescente e as cada vez maiores dificuldades assistenciais dos HUC, assoberbados em todas as frentes devido a uma concentração desmedida, esse movimento de cidadania, foi alargando a sua base de apoio, pressionando a Administração dos CHUC e o governo para mudar o desacertado caminho até aqui trilhado.

O “cordão humano” que uniu profissionais da saúde, cidadãos, representantes sindicais, partidários e da autarquia, nesta terça-feira, dia 9 de Junho, junto ao Hospital dos Covões, em protesto contra o anúncio de mais amputações à sua actividade, foi mais uma manifestação de que é necessário e urgente inverter essa política de menorização de uma importante estrutura hospitalar, quando mais se percebe e valoriza a sua existência.

De resto, basta olhar para trás e ver tudo o que se havia construído e que se perdeu: um Hospital Central com os serviços, especialidades e valências que o prestigiavam como unidade de referência assistencial e de ensino, com inegáveis serviços prestados à cidade, à região e ao país.

É isso que é preciso reconstruir.

(*) Médico