O impacto da covid repercutiu, directa e indirectamente, em todos os sectores da actividade humana. O vasto espectro cultural, já de si debilitado pela ausência de políticas estruturais capazes de defender, capacitar e valorizar os recursos endógenos, tem sido um campo fecundo de morte silenciosa – não só de talentos de créditos firmados, mas também de figuras emergentes.
De facto, são já muitos os pequenos e médios agentes culturais – da música, ao teatro, da dança à magia, da produção de conteúdos escritos à disponibilização de instrumentos culturais tecnológicos – que assumem que chegou o fim, dando nota da decisão em círculos mais ou menos restritos, embora também o façam através das redes sociais, como forma de desabafar com o imenso mundo virtual o desencanto do fogo que arde por dentro.
Esta gente, que tem dado muito de si ao longo da vida, com enorme sacrifício e amor à arte, vê-se confrontada com a inexistência de um estado cultural, que a defenda, ampare e promova nas horas mais difíceis da sua vida profissional. A maioria, há muito confinada a recibos verdes, e ao estado calamitoso da precariedade, vira-se para outras áreas e toma decisões duras: a sobrevivência dita a lei e abdicam do que gostam de fazer, e muitas vezes bem feito, para se dedicarem ao que é possível fazer, provavelmente, não tão perfeito quanto o desejável.
Percebe-se o erro histórico e crasso da área cultural: incapaz de estruturar em pleno século XXI, na era digital e post-moderna, uma rede de todos estes milhares de players, proceder ao seu inventário, de forma a conhecer o que existe e de que forma o existente pode ser potenciado – em contexto de crise ou fora dele.
Todos teríamos em ganhar com a criação desta rede, excepto os grandes peixes, os predadores-tubarões, que consomem vastíssimos recursos à boleia de protagonismos, redes clientelares, movimentos de massas e lobismo. Talvez por esta condicionante essa rede não tenha ainda sido criada: não interessa aos grandes que os pequenos e médios possam afrontar o seu poderio. Sempre assim foi na longa história da humanidade…
O problema é que todos perdemos com este esquema unidireccional: conhecimento, informação, diversidade, pluralidade, interdisciplinaridade, multiculturalidade, criatividade, talento e mérito. Em vez de cultura temos a desculturação, com a conivência dos decisores – sendo certo que um dia, a história dará nota da verdade possível dos tempos que vivemos!
É preferível, pois, dar uma esmola de protecção social ou anunciar investimento na cultura sem grandes explicações ou enquadramento legal, de forma a que o povo incógnito se não revolte – incentivando o cariz assistencial, esmolante e subsídio-dependente da cultura – ao invés de catapultar aquilo que temos de melhor como medida e instrumento primordial na afirmação de um novo tempo cultural – que se deseja mais justo e equilibrado.
(*) Historiador e investigador