A Lei 7/2020, de 10 de Abril, provê, no seu artigo 4.º, à garantia de acesso aos serviços de interesse geral, vulgo, serviços públicos essenciais.
Eis como se desenha o artigo que a lume veio sexta-feira última:
“Artigo 4.º
Garantia de acesso aos serviços essenciais
1 – Durante o estado de emergência e no mês subsequente, não é permitida a suspensão do fornecimento dos seguintes serviços essenciais, previstos no n.º 2 do artigo 1.º da Lei n.º 23/96, de 26 de Julho:
a) Serviço de fornecimento de água;
b) Serviço de fornecimento de energia eléctrica;
c) Serviço de fornecimento de gás natural;
d) Serviço de comunicações electrónicas.
2 – A suspensão prevista na alínea d) do número anterior aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infecção por COVID-19.
3 – Durante a vigência da presente lei, os consumidores que se encontrem em situação de desemprego ou com uma quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 % face aos rendimentos do mês anterior podem requerer a cessação unilateral de contratos de telecomunicações, sem lugar a compensação ao fornecedor.
4 – No caso de existirem valores em dívida relativos ao fornecimento dos serviços referidos no n.º 1, deve ser elaborado um plano de pagamento.
5 – O plano de pagamento referido no número anterior é definido por acordo entre o fornecedor e o cliente, devendo iniciar-se no segundo mês posterior ao estado de emergência.”
2. Salvo melhor juízo, a norma suscita fundadas dúvidas em vista da redacção do n.º 2 do artigo em realce:
“A suspensão prevista na alínea d) do número anterior aplica-se quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infecção por COVID-19.”
3. O n.º 1 proíbe, por outras palavras, o “corte” dos serviços.
Mas o n.º 2 refere-se ao “corte” das comunicações electrónicas. E diz que o “corte” ocorrerá quando o incumprimento for motivado por situações de desemprego, quebra de rendimentos do agregado ou em consequência de infecção pelo vírus.
Uma de duas:
Ou a lei pretende dizer “a não suspensão” (a insusceptibilidade de “corte”)
Ou – o que é um contra-senso – a suspensão (o “corte”) aplicar-se-á a consumidores deprimidos (desempregados, com redução dos rendimentos do trabalho ou infectados com o COVID 19 ), que não aos mais (os que não padecem de quaisquer vulnerabilidades das enunciadas).
4. Se se pretende restringir a não suspensão aos consumidores vulneráveis (v. g., desempregados, com perda de rendimentos, etc.), então convém redigir de modo diverso o inciso de que se trata, a saber:
“A não suspensão dos serviços previstos na alínea d) do número anterior só se aplica quando motivada por situação de desemprego, quebra de rendimentos do agregado familiar igual ou superior a 20 %, ou por infecção por COVID-19.
5. No entanto, não se nos afigura de estabelecer quaisquer restrições, tendo em vista até o encadeado temporal imbricado no procedimento de suspensão que deriva da Lei das Comunicações Electrónicas (prazos muito mais folgados que os dos demais serviços públicos essenciais e que os prorrogam consideravelmente).
6. Importa não perder de vista o facto de em ordenamentos com afinidades com o nosso haver sido decretada simplesmente a não suspensão dos serviços durante o período alargado do estado de emergência. Sem mais!
7. Parece estar a ignorar-se a essencialidade das comunicações electrónicas num período tão crítico, por definição, como este, o que obrigará a não estabelecer, neste particular, qualquer excepção:
O telefone é algo de essencial nos contactos dos pacientes com os serviços de saúde e meios adjuvantes;
A Internet é, em geral, indispensável para as aulas a que ora se sujeitam os escolares de todos os graus e ramos de ensino, como para o mais, à falta de Internet gratuita para todos, como direito humano.
8. Logo, parece de destacar tamanhas incongruências, mormente por forma a redefinir os termos da não suspensão (do “corte”) dos serviços, contanto que:
Se não estabeleça qualquer excepção às comunicações electrónicas, seja qual for a situação dos consumidores;
Se garanta também às pessoas infectadas a susceptibilidade de porem termo às fidelizações, coisa que por ora se lhes não consente (n.º 3 do artigo 4.º em apreciação) por não constarem do rol dos que o podem fazer. E não é por estarem doentes que tal se revelará impossível de efectivar…
Legislar, mesmo em situação de crise, é algo que requer ponderação: as leis têm de ser legíveis, inteligíveis, justas. E não podem ser feitas às três pancadas!
ApDC – DIREITO DO CONSUMO – Coimbra