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Semanário no Papel - Diário Online

 

João Nuno Calvão da Silva

Mundo pós COVID 19

27 de Abril 2020

Vivemos tempos únicos, de incerteza (quase) absoluta. Fechados em casa (os que podem…), isolados do contacto com família, amigos e colegas. Não podemos sequer visitar quem tomou conta de nós enquanto bebés e crianças! Parece que só afastados fisicamente dos mais velhos podemos demonstrar a nossa humanidade. Mundo estranho: o altruísmo das gerações mais novas traduz-se em votar os anciãos queridos à solidão (rectius, à perigosidade) dos lares por tempo indeterminado… quem sabe, até ao fim das suas vidas. E, mesmo então, sem direito a despedida condigna.

Nunca pensámos viver algo que incutisse tanto medo (do desconhecido) e limitasse (de modo insuportável) o calor humano do abraço e do beijo, o convívio de café ou a jantarada com amigos. O denominado COVID 19 não se limita, porém, a transformar profundamente as relações inter-humanas ou a obrigar a reflexão profunda sobre os limites da natureza humana e a relação com Deus. Peste democrática, sem fronteiras geográficas ou sócio-económicas, este coronavírus provoca poderosas transformações na relação Estado-Sociedade e na ordem geoestratégica em que temos vivido. Enfrentamos, sem dúvida, a mais grave ameaça às liberdades, aos valores democráticos e à paz mundial da nossa existência.

Em notas breves, vejamos as principais razões da nossa preocupação.

A União Europeia, de que Portugal tanto depende, corre sérios riscos de extinção: a desagregação pré-COVID 19 era patente com o Brexit, mas a ausência de uma resposta eficaz e solidária ao momento de emergência inviabiliza cada vez mais a sobrevivência do projecto político que há 61 anos tem significado paz e prosperidade; as divergências Norte/Sul acentuam-se, a incapacidade clara de as lideranças responderem à altura das exigências do momento provoca nos cidadãos (da maioria dos Estados Membros) uma sensação de injustiça e de inutilidade da construção comunitária.

No epicentro da maior pandemia de que há memória, quando todos convergem na ideia de que nos aproximamos de uma catástrofe económica e social de dimensão muito superior à de 2007/08, a resposta dos 27 cinge-se aos mesmos mecanismos de então, com mais um ou outro paliativo que serve apenas para nos atirar areia para os olhos.

Ou Merkel resolve isto e fica na História ou a União Económica e Monetária soçobrará. Perigo particularmente relevante quando a retórica de lideranças mundiais parece apontar para um reavivar do clima de Guerra Fria (desta vez com China) e decisões como a do Presidente Trump quanto à OMS aceleram o fim da era do multilateralismo.

Lay offs, despedimentos, falências… enfim, miséria social é a certeza de hoje e dos anos seguintes. Terreno fértil para demagogos, populistas e extremistas (de direita e de esquerda) virem em breve tomar as rédeas do poder, caso as lideranças políticas actuais não demonstrem a coragem e o sentido de responsabilidade necessários.

Não vemos sinais de esperança: na Hungria, a ditadura vigente reforça-se, com a crescente e descarada eliminação (temporária?!) de direitos e garantias, a pretexto do estado de excepção imposto para superar o problema sanitário; a curto/médio prazo, veremos se o encerramento de fronteiras não se prolongará indefinidamente sob a capa da incerteza da saúde pública, destruindo-se assim, silenciosa e progressivamente, as conquistas dos acordos de Schengen.

Com o pânico de a vacina não chegar rapidamente, aplaude-se a intensificação do controlo tecnológico dos movimentos das pessoas, única forma que se antevê de conciliar a saúde com a necessidade de reabertura gradual da economia. Defensores da protecção de dados e da privacidade são amaldiçoados, o ‘Big Brother’ dos totalitarismos não é questionado… ad eternum?

A maior crise desde a Grande Depressão justifica a maior intervenção do Estado na Sociedade: nacionalizações de empresas ditas estratégicas, controlo público de mais sectores económicos, ajudas estatais respaldadas por normativos transitórios…

Não questionamos o ressurgimento do Estado Providência, mas, a propósito da celebração dos 20 anos do Campeão das Províncias, não podemos deixar de partilhar o nosso receio sobre o modo como o poder público poderá sentir-se tentado a apoiar os media: o controlo destes é instrumento decisivo das ditaduras!

Reconhecemos a importância da imprensa em geral, sobretudo num tempo em que as ‘fake news’ poluem perigosamente as redes sociais; salientamos em especial a imprensa de proximidade, em que exemplos de liberdade, independência e qualidade como o Campeão devem ser amparados (também pelo poder público)… como instrumentos de concretização de liberdades (de expressão, de imprensa) e garantes da sociedade democrática e inclusiva (cão de guarda da democracia).

(*) Professor da Faculdade de Direito e Vice-Reitor da Universidade de Coimbra para as Relações Internacionais