Vivemos tempos únicos, de incerteza (quase) absoluta. Fechados em casa (os que podem…), isolados do contacto com família, amigos e colegas. Não podemos sequer visitar quem tomou conta de nós enquanto bebés e crianças! Parece que só afastados fisicamente dos mais velhos podemos demonstrar a nossa humanidade. Mundo estranho: o altruísmo das gerações mais novas traduz-se em votar os anciãos queridos à solidão (rectius, à perigosidade) dos lares por tempo indeterminado… quem sabe, até ao fim das suas vidas. E, mesmo então, sem direito a despedida condigna.
Nunca pensámos viver algo que incutisse tanto medo (do desconhecido) e limitasse (de modo insuportável) o calor humano do abraço e do beijo, o convívio de café ou a jantarada com amigos. O denominado COVID 19 não se limita, porém, a transformar profundamente as relações inter-humanas ou a obrigar a reflexão profunda sobre os limites da natureza humana e a relação com Deus. Peste democrática, sem fronteiras geográficas ou sócio-económicas, este coronavírus provoca poderosas transformações na relação Estado-Sociedade e na ordem geoestratégica em que temos vivido. Enfrentamos, sem dúvida, a mais grave ameaça às liberdades, aos valores democráticos e à paz mundial da nossa existência.
Em notas breves, vejamos as principais razões da nossa preocupação.
A União Europeia, de que Portugal tanto depende, corre sérios riscos de extinção: a desagregação pré-COVID 19 era patente com o Brexit, mas a ausência de uma resposta eficaz e solidária ao momento de emergência inviabiliza cada vez mais a sobrevivência do projecto político que há 61 anos tem significado paz e prosperidade; as divergências Norte/Sul acentuam-se, a incapacidade clara de as lideranças responderem à altura das exigências do momento provoca nos cidadãos (da maioria dos Estados Membros) uma sensação de injustiça e de inutilidade da construção comunitária.
No epicentro da maior pandemia de que há memória, quando todos convergem na ideia de que nos aproximamos de uma catástrofe económica e social de dimensão muito superior à de 2007/08, a resposta dos 27 cinge-se aos mesmos mecanismos de então, com mais um ou outro paliativo que serve apenas para nos atirar areia para os olhos.
Ou Merkel resolve isto e fica na História ou a União Económica e Monetária soçobrará. Perigo particularmente relevante quando a retórica de lideranças mundiais parece apontar para um reavivar do clima de Guerra Fria (desta vez com China) e decisões como a do Presidente Trump quanto à OMS aceleram o fim da era do multilateralismo.
Lay offs, despedimentos, falências… enfim, miséria social é a certeza de hoje e dos anos seguintes. Terreno fértil para demagogos, populistas e extremistas (de direita e de esquerda) virem em breve tomar as rédeas do poder, caso as lideranças políticas actuais não demonstrem a coragem e o sentido de responsabilidade necessários.
Não vemos sinais de esperança: na Hungria, a ditadura vigente reforça-se, com a crescente e descarada eliminação (temporária?!) de direitos e garantias, a pretexto do estado de excepção imposto para superar o problema sanitário; a curto/médio prazo, veremos se o encerramento de fronteiras não se prolongará indefinidamente sob a capa da incerteza da saúde pública, destruindo-se assim, silenciosa e progressivamente, as conquistas dos acordos de Schengen.
Com o pânico de a vacina não chegar rapidamente, aplaude-se a intensificação do controlo tecnológico dos movimentos das pessoas, única forma que se antevê de conciliar a saúde com a necessidade de reabertura gradual da economia. Defensores da protecção de dados e da privacidade são amaldiçoados, o ‘Big Brother’ dos totalitarismos não é questionado… ad eternum?
A maior crise desde a Grande Depressão justifica a maior intervenção do Estado na Sociedade: nacionalizações de empresas ditas estratégicas, controlo público de mais sectores económicos, ajudas estatais respaldadas por normativos transitórios…
Não questionamos o ressurgimento do Estado Providência, mas, a propósito da celebração dos 20 anos do Campeão das Províncias, não podemos deixar de partilhar o nosso receio sobre o modo como o poder público poderá sentir-se tentado a apoiar os media: o controlo destes é instrumento decisivo das ditaduras!
Reconhecemos a importância da imprensa em geral, sobretudo num tempo em que as ‘fake news’ poluem perigosamente as redes sociais; salientamos em especial a imprensa de proximidade, em que exemplos de liberdade, independência e qualidade como o Campeão devem ser amparados (também pelo poder público)… como instrumentos de concretização de liberdades (de expressão, de imprensa) e garantes da sociedade democrática e inclusiva (cão de guarda da democracia).
(*) Professor da Faculdade de Direito e Vice-Reitor da Universidade de Coimbra para as Relações Internacionais