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Semanário no Papel - Diário Online

 

Carlos Costa Almeida

A epidemia e a solução final

9 de Abril 2020

O Artigo 64.º da Constituição da República Portuguesa diz assim: “1. Todos têm direito à protecção da saúde e o dever de a defender e promover. … 3. Para assegurar o direito à protecção da saúde, incumbe prioritariamente ao Estado: a) Garantir o acesso de todos os cidadãos, independentemente da sua condição económica, aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação.”

É a nossa Constituição, e tem de ser cumprida. Excepto quando, em momentos de aperto e de salve-se quem puder, o “todos” passe a significar “todos os que puderem e os deixarem”?… Um Estado decente pode deixar para trás alguns dos seus cidadãos?…

O sistema de saúde em qualquer país tem de ser capaz de resolver os problemas de saúde habituais do país, em tempo útil, e ter a folga de capacidade necessária para reagir eficazmente a momentos inesperados de maior procura, como sejam epidemias ou catástrofes naturais ou provocadas. Essa capacidade a mais não utilizada tem de existir sempre, embora, admitamos, nalgumas situações, seguramente raras, possa não ser o suficiente. O que não é aceitável é a capacidade para o dia a dia ser reduzida abaixo do necessário, com listas de espera para exames e tratamento de milhares de doentes que, na verdade, não são estudados e tratados quando devem ser, mas quando é possível. Nessas condições, quando surge um aumento brusco de doentes agudos que não podem ir para uma lista de espera, o sistema arrisca-se a entrar em colapso.

Uma epidemia tem sempre um impacto que no seu início é desconhecido, mas que se vai delineando no seu decorrer. Tem muito a ver com a contagiosidade e a gravidade da doença, traduzida pela taxa de letalidade e pelo que é necessário fazer para tratar os doentes. Como exemplos máximos, podemos lembrar a peste, antes dos antibióticos, com uma letalidade de 99 %, ou a doença por vírus Ébola, com 70 %. A infecção pandémica por covid-19 afecta em média menos de 0,2 % da população (no total, contando com os que estiveram infectados e já se curaram, e de acordo com os países onde se têm feito mais testes de diagnóstico), nos países ocidentais onde se tem manifestado mais, sendo que 80% dos infectados doentes podem ser tratados em casa, e dos 20% que são internados só cerca de 7% necessitam de cuidados intensivos. A taxa de letalidade, nos países que têm conseguido dar uma melhor reposta à epidemia (entre eles Portugal), é menos de 3%.

Dada a muito maior mortalidade nas pessoas mais velhas e mais frágeis, a primeira preocupação nalguns países foi resguardá-las do contágio, mantendo-as em casa afastadas de possíveis infectados. A solução inicial, dada a baixa mortalidade nos mais jovens, foi essa, por exemplo no Reino Unido, que no princípio da pandemia só preconizava o distanciamento social preventivo dos mais velhos, não se importando que os mais novos contraíssem a infecção, apostando no estabelecimento duma imunidade de grupo que depois permitisse aos velhos poderem sair à rua sem estarem imunizados pela infecção. O problema foi que o número de doentes a precisarem de internamento e de cuidados intensivos foi aumentando, embora dentro daquelas percentagens, e o sistema de saúde começou a falhar. Começou a não haver camas, nem ventiladores, nem pessoal (muitos deles também entretanto infectados) disponíveis para todos os doentes, e anunciou-se uma possível outra solução: escolher quem era tratado com ventilação assistida e quem não era.

Todos percebemos que há doentes velhos, ou não, com uma doença terminal, ou acamados, anquilosados, demenciados, ou com comorbilidades graves, para quem a covid-19, ou uma gripe, são apenas um episódio terminal, não se sabendo mesmo se a causa de morte lhes deve ser assacada ou a uma doença de base. O não ventilar esses pacientes é uma decisão médica, o contrário seria distanásia, procurando apenas protelar uma morte anunciada, inexorável e iminente, eventualmente prolongando-lhes o sofrimento. Outra coisa é não ventilar um doente velho mas com possibilidade de sobreviver à doença, apenas por ser velho e haver poucas camas de cuidados intensivos. Isto é, estabelecer um limite de idade acima do qual não se ventilam os doentes. Uma coisa é elencar princípios médicos para não se praticar o que se considera tratamento excessivo, outra coisa é estabelecer regras que permitam não se tratarem doentes só porque não há ventiladores que cheguem. Ter de escolher pontualmente entre doentes, porque chegaram vários ao mesmo tempo e não há ventilador para todos, nem possibilidade de alguns serem transferidos para outras unidades, pode acontecer. Mas já aí configura uma falha grave do sistema de saúde, que permite que cidadãos morram por falta de assistência, por o Estado não “assegurar o direito à protecção da saúde… e garantir o acesso de todos os cidadãos… aos cuidados da medicina preventiva, curativa e de reabilitação”. Todos, independentemente da sua condição económica, e da sua idade. E, por maioria de razão, se essa acção estiver estipulada como solução final na luta contra uma epidemia!

Quando se procura aumentar a longevidade dos cidadãos, se criam serviços de Geriatria, há uma preocupação expressa com o “ageing”, com o envelhecimento activo, e se procura resguardar os idosos no início duma pandemia, tudo isso soa a cinismo quando, num aperto em que o sistema de saúde do país falha, se decide deixar morrer os mais velhos que uma determinada idade (70 anos?). Se discrimina na saúde pela idade. Soa a falso qualquer consideração por quem viveu, trabalhou, ensinou, criou, pagou, por quem foi pai e avô. Como se depois de reformados não tivessem já direito à vida, e tudo o que viveram antes não contasse para nada. Como se a sua vida “já não valesse a pena ser vivida”, a não ser que não incomode muito, e não tire o lugar nos ventiladores que o Estado deveria acautelar para todos. Quando, numa situação destas, há Estados, como a Holanda, que lhes recusam o direito de pedir para viver, ao mesmo tempo que lhes reconhecem o direito de pedir para morrer.

Eu por mim fico satisfeito por ver uma velhota de 103 anos, a falar ao telemóvel, feliz e satisfeita, depois de ter sobrevivido à covid-19. E não é por terem morrido outros muito mais novos que ela…

(*) Prof. Doutor da Faculdade de Medicina de Coimbra, Centro Cirúrgico de Coimbra e ex-Director de Serviço de Cirurgia do Hospital Geral-CHUC