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Repúblicas de Coimbra cerram fileiras para resistir como comunidades

2 de Abril 2020

As repúblicas de Coimbra enfrentam a Covid-19 como mais um teste à sua capacidade de sobrevivência, com algumas destas comunidades estudantis a cerrarem fileiras na partilha e na reinvenção em tempo de pandemia.

A curta distância da Sé Velha, a mais antiga república da cidade, os Kágados, tem as portas fechadas.

Os seus membros decidiram ficar na casa, depois de a Universidade de Coimbra (UC) ter suspendido as aulas presenciais, há três semanas.

Pedro Pinheiro afirma à agência Lusa que seis dos oito actuais residentes estão nas instalações, onde prosseguem, confinados, as actividades académicas. Apesar das restrições, preparam as refeições e confraternizam.

“Ajudamo-nos uns aos outros e temos ainda mais vontade de estarmos reunidos”, sublinha.

Segundo o estudante de Filosofia, quando o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, decretou o estado de emergência, dois “repúblicos” estavam de visita às famílias “e já não puderam voltar” a Coimbra.

Dos seis “resistentes”, metade são jovens italianos, dois oriundos de Roma e um de Turim, que frequentam a UC ao abrigo do programa europeu Erasmus.

“Esta situação obrigou-nos a reconhecer – re-conhecer com hífen – o que está dentro da casa”, refere Pedro Pinheiro, para destacar o trabalho que têm vindo a realizar em torno dos espólios da República dos Kágados, como a arrumação da biblioteca e a organização do arquivo de fotos dos antigos “kagadais”.

O universitário da Póvoa de Varzim testemunha “uma vidinha tranquila” na comunidade, fundada em 1933, e admite que o grupo “não estava preparado” para passar 24 horas em clausura, com raras saídas para ir ao supermercado.

Mantendo uma prática que já vigorava, os Serviços Sociais da Universidade de Coimbra (SASUC) entregam às repúblicas os mantimentos que cada uma requisita e paga, um sistema que abrange os Kágados e a Boa-Bay-Ela, entre outras.

Na República Boa-Bay-Ela, acima do Jardim da Sereia, estão agora quatro jovens, incluindo uma alemã.

“Almoçamos e jantamos juntos, tentando continuar com as rotinas”, diz à Lusa o madeirense Iani Pestana.

Antes de ser declarado o estado de emergência, dois moradores reuniram-se às famílias e o grupo deixou de ter cozinheira.

“Estamos a aproveitar para fazer obras e cuidar mais um bocadinho da casa”, conta o aluno de Psicologia.

Na “Alta”, sem o bulício de milhares de pessoas nas ruas, situam-se algumas das mais emblemáticas repúblicas, das cerca de 25 que perduram em Coimbra.

É o caso dos Galifões, renascida há duas décadas, na sequência da campanha “Grão a grão, fazemos a reconstrução” e após ter sido destruída por um fogo.

Miguel Ribeiro e cinco companheiros, entre os quais uma mulher, continuam na casa, que habitualmente acolhe 11 pessoas.

Um residente é um indiano que prepara o doutoramento em Língua e Cultura Portuguesa, com uma bolsa do Instituto Camões.

“Decidimos fazer um isolamento voluntário”, explica à Lusa o aluno de Sociologia.

Entretanto, foi adiada a festa do 73.º aniversário da República dos Galifões (designada “centenário”, segundo a tradição académica), que deveria realizar-se no sábado.

“A malta não está muito habituada a ficar em casa”, lamenta.

Miguel Ribeiro revela que a comunidade confecciona as suas refeições, depois de a cozinheira ter ido para casa enquanto durar a pandemia.

A trabalhadora pertence a um grupo de risco e “continua a receber o salário por inteiro”, segundo o “galifão”.

“Somos abastecidos de bens alimentares pelos SASUC. Mas tememos que este serviço acabe”, adianta.

Os membros da república procuram “manter as rotinas da casa”, o que conciliam com revisões do sistema eléctrico e dos equipamentos.

“As repúblicas estão a agir como as famílias”, face à covid-19, verifica a investigadora Teresa Carreiro, que estuda há vários anos estas comunidades estudantis.

Autora de três obras nesta área, Teresa Carreiro realça que as repúblicas, não sendo “só uma forma de alojamento específico”, intervieram sempre na academia e na cidade, procurando cada uma preservar o seu espaço físico e a vivência comunitária.

Nos últimos anos, estas casas têm reclamado a protecção dos poderes públicos, face à aplicação da Lei das Rendas, que tem ditado o desaparecimento de algumas repúblicas.