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Semanário no Papel - Diário Online

 

Diniz de Freitas

A arte médica e o SNS

24 de Janeiro 2020

1. Com o advento eufórico e triunfal da Biotecnologia, a arte médica ficou na penumbra. O médico renunciou gradualmente à evidência subjectiva – o que o doente diz -, substituindo-a pela evidência objectiva – o que a máquina revela -, isto é, foi-se afastando progressivamente do seu doente e do seu próprio julgamento clínico.

Ora a medicina não pode nem deve confinar-se às fronteiras do cientismo tecnológico empirista e racionalista. Deve voar para a transdisciplinaridade, porque a medicina é não só ciência e técnica, mas também arte, a sua terceira e mais nobre essência. É esta que alcandora a medicina ao patamar da metaciência, enquanto maneira, modo ou jeito de lidar com o doente, suavizar a sua inquietação, sondar o seu atribulado espírito, compartilhar e agasalhar a sua dor, esclarecer as suas dúvidas e respeitar a sua dignidade e a sua essência metafísica. Sem arte, a medicina reduz-se a uma disciplina tecnocientífica timbrada pela frieza, sem perspectiva humanista.

2. No nosso Serviço Nacional de Saúde (SNS) o raciocínio semiológico foi-se paulatinamente esboroando, isto é, a arte médica foi secundarizada e banalizada. E no entanto, o diálogo entre o médico e o enfermo e a elaboração de uma história clínica exemplar representam o acto médico mais nobre e insubstituível na prática clínica, sendo um dos pilares essenciais na edificação de um sistema de saúde de qualidade. Sem a essência da arte, a medicina fica seriamente amputada e desacreditada. Assim sucedeu no nosso SNS.

3. Infelizmente, temos vindo a assistir ao progressivo desmantelo e ao crepúsculo do SNS, que, apesar de algumas imperfeições, atingiu no passado uma honrosa e invejável posição no contexto mundial, e testemunha-se a gestão ruinosa de um modelo de saúde ambíguo, incongruente, casuístico e reactivo, onde efloresce a pesporrência, a intimidação, a desorientação e a bajulação. O seu objectivo fundamental e obcecado é assinalado por um frio calculismo contabilístico e pela consagração de políticas mecanicistas e utilitaristas, que vão abrindo a porta à mercantilização da saúde, com as suas corrosivas consequências, uma vez que não existe nem disciplina, nem regulação, nem controlo, nem avaliação. Na mente de muitos escribas de gabinete e de capatazes da tutela germina a ideia abstrusa de que as Instituições de saúde não são refúgios sagrados de acolhimento do ser humano doente, mas tão somente estações de serviço que vendem saúde a retalho, ou oficinas de reparação técnica e mecânica de mazelas da máquina humana, ou fabriquetas de produção robotizada e acelerada de remendos para tapar e despachar uma maleita, mas não para cuidar do doente.

4. Cabe então perguntar: como é possível, neste cenário embodegado, caótico e profundamente desumano, exercer a arte médica, e portanto prestar cuidados de elevada qualidade, avaliados por instrumentos robustos, ajustados e credíveis, e não pelas metodologias de avaliação corrente, uma mistificação e uma falácia que levianamente se propagandeia?

5. Responderia da seguinte forma: foi a classe médica quem concebeu e vigorosamente advogou, como finalidade suprema, a criação de um Serviço de Saúde universal, como se lê no Relatório Sobre as Carreiras Médicas, aprovado por unanimidade em Assembleia Geral da Ordem dos Médicos, em 17 de Junho de 1961. Compete por isso à classe médica, em nome de um passado que deve honrar, pugnar sem tréguas pela restauração de um SNS de elevada qualidade e competência, como sempre desejou, quer a nível do ambulatório, quer no mundo hospitalar.

Para o efeito, a classe médica, e de um modo especial os jovens médicos, devem resgatar e consolidar o prestígio da nossa profissão; pugnar de forma inelutável, pelo primado da competência; asseverar que a profissão médica tem o irrecusável direito e o dever de afirmar a sua unidade e independência, assumindo a responsabilidade da sua auto-regulação, e a condução científica da sua formação; exigir que a investigação científica seja uma vertente da nossa actividade profissional; recuperar a dignidade do acto médico, que tem sido tão abastardado e profanado; não tolerar que se menospreze a ética do dever e a moral da consciência, e que se oprima a dignidade do ser humano; pugnar pelo estabelecimento de condições que garantam o exercício autónomo e independente da nossa actividade, a qualidade dos cuidados prestados e a aceitação do primado da inviolabilidade do ser humano; lutar pela restauração plena das carreiras médicas, que constituíram no passado um poderoso instrumento de ensino e de formação, de sagração do mérito e da hierarquia, e de indesmentível fulgor no desempenho clínico; varrer das estruturas da Saúde o desperdício, traduzido designadamente na incompetência e no parasitismo de gente inútil que as enxameia; e repudiar modelos de gestão economicistas e utilitaristas, que se satisfazem e vangloriam com anúncios e propaganda de números, muitas vezes fictícios, desconhecendo que o que importa no mundo clínico é a excelência dos cuidados prestados

6. O momento que passa exige reflexão, mas também acção. Uma postura entorpecida, displicente e niilista compromete definitivamente o nosso futuro. A classe médica sempre defendeu princípios e valores fundamentais vertidos nos seus Estatutos, Códigos e Regulamentos sem os quais qualquer política de saúde é uma aberração. Muitos desses princípios e valores estão a ser violados. Estamos a ser espoliados de direitos e de prerrogativas que gerações passadas conquistaram e nos legaram, e por isso se perfila no horizonte o espectro do assalariamento submisso e opresso Nunca é tarde para lutar, para exigir, para intimar. Nunca é tarde para restaurar um SNS competente e de rosto humano, à luz dos princípios consagrados pela classe médica em 1961.Nunca é tarde para confrontar a inépcia e a despudorada incompetência da actual tutela da saúde.

(*) Professor Catedrático de Medicina, Jubilado